A Música e o Piano:
Um canal para a expressão do Self

“A maneira como cada nota tem um som, cada momento, a gente responde de uma maneira, né, vai ter dias que você vai estar se sentindo mais introspectivo, e que entre as pessoas isso não pode fazer tanta parte, tem que ter tempo, você tem que dar espaço para o outro lado também, as pessoas precisam da gente assim como a gente precisa delas, não ser muito sozinha. Tem as dificuldades para fazer isso ou não. Cada um tem um som e na vida também é assim, todo dia na vida tem um som diferente para você, tanto bom quanto ruim, é mais o preparo para saber, para ter uma estrutura para saber aceitar o que vier”.

(Juliana, Maio de 2009)

Agradeço e Dedico este trabalho a todos que, de alguma forma, aqui se fazem presentes:

Aos professores do curso de Abordagem Junguiana do Cogeae-PUC/SP, em especial, à professora supervisora Heloísa Dias da Silva Galan, com suas

importantes contribuições e reflexões sobre a pesquisa.

Aos alunos que formaram a turma que está finalizando este curso de especialização em 2009, em especial, ao grupo de supervisão Adriana, Branca,

Eliana (in memorian) Ligia, Mayra, Milena.

Aos alunos de piano, crianças e adultos, que me fizeram sentir e refletir sobre tocar piano e a importância que tal aprendizado pode representar no desenvolvimento humano, em especial, a colaboradora deste estudo. Sem ela, certamente, este opus musical não teria tanta riqueza.

E, sem dúvida, aos meus familiares, pais, irmãos e marido, que muito contribuíram em diversos momentos desta caminhada.

O objetivo dessa pesquisa foi compreender se o contato musical, por meio da expressividade da pessoa que toca piano, pode promover um canal de abertura e expressão do Self. Para tal, foi realizada uma pesquisa qualitativa embasada nos pressupostos da psicologia analítica, de C.G. Jung, que introduziu uma nova maneira de praticar a psicologia, a partir de uma visão de mundo e do homem pautada em uma compreensão simbólica da realidade. O método de investigação da psicologia analítica é caracterizado pelo processamento simbólico do material pesquisado, obtido através de instrumentos projetivos. Para esta pesquisa foi escolhida como colaboradora uma aluna de piano adulta, de 28 anos, que procurou aprender o instrumento musical por motivos pessoais e não profissional. Para a coleta dos dados foi realizada uma entrevista semi-estruturada, buscando compreender sua história de vida, a relação com a música e com o piano. Além desta, cinco aulas de piano foram acompanhadas e foram solicitados desenhos espontâneos antes e depois das aulas de piano que tiveram duração de uma hora. A análise do material sugere uma dificuldade da participante em se expressar verbalmente e se relacionar com o mundo externo, possivelmente um aprisionamento no complexo materno. O contato com o piano mostrou-se como uma possibilidade de olhar para os conteúdos do inconsciente pessoal, como as vivências complexadas e desvitalizadas, podendo resgatar outros aspectos do arquétipo materno; além disso, o contato com o piano possibilitou o acesso a potencialidades inconscientes, confirmando a hipótese inicial de que o piano pode ser um canal de expressão do si mesmo. Por meio da análise das vivências simbólicas, percebemos que o piano é um símbolo de transformação que faz o papel de função transcendente, relacionando mundo interno e externo, ou seja, pode ser um canal de ligação entre ego e Self.

INTRODUÇÃO

“Reflexão”.

“O pensamento nos da a idéia de futuro, O futuro: é presente e o passado.

Viva bem o presente, pense no passado, e não espero no futuro”

(Juliana, Maio de 2009)

Diversos autores (Fregman, 1989; Schafer, 1992; Goes, 2008) referem sobre a presença do som nos mais diversos contextos. Atentos ou não, dormindo ou acordados, conscientes ou inconscientes, estamos cotidianamente imersos em sons. É o som do automóvel que passa, do rádio do vizinho, da televisão ligada, do pássaro, do vento, da chuva, de um rio que corre, de um lago, é possível descrever infinitas situações, pois o som está presente desde sempre. Se não é o som, é a ausência de som, o silêncio. E é este som e este silêncio que, com um ritmo próprio, vão nos oferecer as primeiras noções de música. Mas, o que é a música? Como é a relação desses sons construídos pelo ser humano que irão configurar a arte musical? Por que muitas vezes ouvimos pessoas dizerem que a música acalma, ou provoca tensão, que mobiliza nossas emoções? Estas são algumas das primeiras indagações que motivam o desenvolvimento de uma pesquisa com o tema da música.

Para além do som cotidiano, tive a oportunidade de conviver com a música desde a infância, estudando piano, em conservatório, cujo objetivo é uma formação técnica do músico. Desse modo, o aprendizado da música e o som do piano compõem minhas lembranças e vivências desde a infância, as músicas folclóricas, corais, bandas infantis, as primeiras notas e músicas tocadas ao piano; o processo individual do aprendizado do instrumento e o coletivo compartilhando sons em orquestras mirins e corais infantis. O aprendizado individual e coletivo, a matemática da música e a expressividade do corpo, da voz e da interpretação. Hoje, após a formação em psicologia, acontece a minha re-aproximação com a música tocada, através do ensino do instrumento para adultos e crianças, sem distinção. Percebo

nas aulas que aprender piano, mais do que técnica, é um encontro; para crianças, é uma estruturação. A criança toca intuitivamente, o adulto procura lógica; A criança apreende a música e suas noções de ritmo, melodia, interpretação, já o adulto que inicia o estudo, esbarra em dificuldades singulares: um não entende o ritmo, outro apenas executa sem conseguir identificar a melodia. Os alunos descobrem seu corpo, o movimento de seus dedos, pulso e a batida, sua postura diante do instrumento e do som expressado. De qualquer forma, uma singularidade está sendo manifestada naquele momento.

A música integra saberes multidisciplinares que apontam para a sua importância na área educacional, social e da saúde. Lima (2007), em artigo teórico, sobre pressupostos básicos para a realização de um agir interdisciplinar na pesquisa e na prática aplicados ao ensino musical conclui que uma prática musical interdisciplinar deveria pensar em um ensino musical que caminhe para um amplo processo de humanização, de forma a abarcar problemas importantes da sociedade. São exemplos ações como a inclusão do ensino musical na formação integral do indivíduo, voltado para todas as faixas etárias e sociais em seus diversos escalões e nas suas múltiplas aplicabilidades; a projeção de um ensino musical que considere de forma integrada, o trabalho, a sociedade e a cultura, comparando nossos saberes musicais com o saber musical de outras comunidades como um processo de valorização cultural.

Schafer (1992), compositor canadense que vem se dedicando aos estudos do ensino da música, revela a importância de ter música nas escolas: a música existe porque nos eleva, transpondo-nos de um estado vegetativo para uma vida vibrante. Lembra que filósofos como Scopenhauer e Langer acreditam que a música é uma expressão idealizada das energias vitais e do próprio Universo. Na prática, a música pode auxiliar a criança na coordenação motora dos ritmos do corpo; a música pode ter um ritmo andante (andare em italiano, significa caminhar), pode correr, pular, pode ser sincronizada com as ondas do mar e com centenas de outros ritmos cíclicos ou regenerativos do corpo e da natureza. O Universo vibra com milhares de ritmos e o homem pode treinar-se para sentir essas pulsações. A música existe para que possamos sentir o eco do Universo vibrando em nós. Mas acrescenta, “o que ensinar?” Além dos nossos repertórios de experiências musicais passadas, a música

de outras culturas também deveriam ser escutadas. É preciso manter sempre vivo o espírito exploratório para fazer a música criativa, ouvindo, analisando, fazendo e estimulando a experiência e a descoberta.

Pacheco (2007) apresenta uma pesquisa preliminar sobre o uso de desenhos no estudo da percepção musical infantil, com crianças entre 6 e 12 anos. Teve como objetivo descrever as representações elaboradas após a apreciação de músicas de diferentes estilos em diversos contextos, utilizando-se da música egípcia, contemporânea e a clássica ao vivo. O estudo conclui que as representações da música egípcia enfatizaram a construção de estereótipos do Egito; já na música contemporânea emergiram aspectos da imaginação e da exploração da criatividade. Para a música clássica ao vivo a experiência visual foi marcante. Em todas predominaram a presença da figura humana – pessoas brincando, dançando, tocando instrumentos musicais e cantando – e de elementos da natureza, ligados à água, como rios, cachoeiras e lagos; o céu também foi amplamente representado, ora com sol e nuvens, ora, com chuva ou estrelas. Por fim, a representação de símbolos musicais, enfatizando para o uso dos símbolos como forma de descrever e representar a música que ouvem, tocam ou inventam, ainda que de forma irracional.

No que se refere a estudos sociais, Silva (2004) em dissertação de mestrado (USP), teve como objeto de estudo a análise de 11 letras do Rap, na perspectiva da análise do discurso, considerando esse gênero musical parte de um movimento cultural maior – o hip hop – que difunde uma visão social de mundo, principalmente nas periferias das grandes cidades do país. O tema marcante nas letras é a vida na periferia que é retratada pelo tráfico e consumo de drogas, pela violência e discriminação enfrentadas pelos jovens. Conclui que as propostas do rap para o enfrentamento e para a superação desses problemas estão voltadas ao fortalecimento e responsabilização do sujeito, que através de um esforço pessoal, não se envolveria com o tráfico e com o consumo de drogas consideradas perigosas e potencialmente destrutivas como o crack e a cocaína.

Em estudo semelhante desenvolvido no Instituto de Psicologia (USP) através de análise de depoimentos, entrevistas e letras de música, sob a perspectiva da psicologia analítica, Scandiucci (2004) procura percorrer o fenômeno chamado

movimento ou cultura hip hop, que atinge parte considerável da população jovem de São Paulo, sobretudo a negro-descendente das periferias Conclui-se que o hip hop tem grande força de expressão simbólica na construção de uma persona criativa dessa população, conferindo-lhe possibilidade de assumir uma identidade mais próxima de sua realidade. Tal movimento é capaz de exercer influência sobre a autonomia dos complexos da sociedade paulistana, principalmente no que diz respeito à questão do racismo e do lugar ocupado pelos negro-descendentes habitantes das periferias.

Zanella e Urnau (2004), em estudo desenvolvido na UFSC, departamento de Psicologia, teve como objetivo incentivar a potência de ação e reflexão em adolescentes com idades entre 10 e 14 anos através de grupos de discussão e oficinas de música. Por meio do estudo dos elementos da música e construção de instrumentos musicais, trabalharam-se temáticas relevantes ao cotidiano dos jovens, com ênfase no desenvolvimento da racionalidade e da afetividade no enfrentamento das questões, com trocas afetivo-reflexivas e no estabelecimento de vínculo entre o grupo e a equipe.

Bergold, Alvime e Cabral (2006) estudaram as influências da música no corpo, junto a enfermeiros participantes de uma disciplina de pós-graduação da UFRJ. Foram temas gerados na discussão: as influências holística, lúdica e mecânica da música sobre o corpo, expressas em diferentes ações e reações, positivas e negativas, por vezes, ambíguas, como: sensação de relaxamento, de alegria, de raiva, de conforto, de irritabilidade, de incomodo, de satisfação, de desejo de se movimentar, entre outras. Os autores concluem que em uma visão ampliada da educação é importante incluir a percepção da influência da arte, em especial da música, na expressão da criatividade para a promoção da singularidade, além de poder ser um recurso importante para equilibrar e humanizar o processo educacional.

O uso da música como recurso terapêutico também é foco de pesquisa nas diversas subáreas da saúde. Goes (2008), pianista e pesquisadora sobre os processos internos que criam a música, desenvolve um trabalho cujo objetivo é tratar da música e afirma que “de certa forma, quando as pessoas têm sua música e

o seu som tratados, muitos benefícios na área da saúde física e mental são disparados” (p.11). Acrescenta que sua função não é formar músicos, mas tratar da música das pessoas para que elas fiquem satisfeitas com sua expressão sonora e que aprendam a utilizar o canal do som em seu próprio beneficio: “uma descoberta que traz equilibro, pois a partir dela se consegue ver o que está realmente acontecendo dentro de cada um” (p17). É possível usar a linguagem musical para acessar o interno da pessoa, mas é preciso também conhecer o seu pensamento para se satisfazer através do som, é preciso ensinar a se perceber e se conhecer, independentemente do quanto ela vai tocar. Para a autora, “o que leva uma pessoa a procurar um aprendizado musical é a necessidade de comunicar-se através da música. Ela sente, mesmo que de forma inconsciente, que tocar é como falar. Existe um som interno que deseja sair” (p.19)

Gaynor (1999) em seu livro “Sons que curam” aponta o poder terapêutico do som, da voz e da música. Esses três elementos, segundo o autor, configuram-se como instrumentos eficazes para restaurar o equilíbrio interno do corpo e despertar o espírito, em unidade com o Universo, ao se buscar os ritmos e a harmonia da música celestial presentes em nós. Fundamenta-se nos princípios musicais de encadeamento, ressonância, tonalidade e harmonia, procurando explicar como e porque os sons e as vibrações influenciam a fisiologia, refletindo sobre a possibilidade de alcançar o bem-estar geral, a energia e a transformação do potencial espiritual de cada um.

Passos (2005), em monografia apresentada na Faculdade de Psicologia da PUC/SP, embasada nos referenciais de Winnicott, estuda a música como fenômeno transicional em bebês, através da observação de bebês em aulas de música. A autora conclui que a música pode, em algumas ocasiões, ter a função de fenômeno transicional, particularmente quando os bebês ficam entretidos na atividade musical ou buscam o contato social. Nos casos estudados, a música e a atividade musical propiciam uma integração dos bebês com o mundo externo e com o ambiente social, além de criar uma área de experiência onde as crianças brincavam e criavam; as crianças adquiriram autonomia, afastando-se de suas mães no decorrer das aulas e aproximando-se do mundo externo e de outras pessoas.

As primeiras relações entre psicologia analítica e música aconteceram a partir de um encontro entre Jung e Margaret Tilly, musicoterapeuta e pianista, na casa dele em 1956 (Gaynor 1999). Neste encontro Jung comenta, com mau humor, que já havia ouvido todos os grandes artistas, mas não lhe agradava mais ouvir música, pois esta o exauria e irritava. A pianista, surpresa com suas considerações, perguntou-lhe sobre o motivo de tal renúncia à música e Jung respondeu que a música evoca um material arquetípico extremamente profundo e as pessoas que tocam não percebem isso. Margaret, então, propõe uma vivência em um piano situado na sala de Jung e ao final, o teórico afirmou que o que ele sentiu e experimentou com a música abriria linhas de pesquisa totalmente novas. Acrescenta ainda que, a partir da experiência vivida, via a música como uma parte essencial de todo tipo de análise, pois ela permite o acesso a níveis arquetípicos mais profundos. Passado os tempos, poucas pesquisas desenvolveram a temática da importância da música para a psique, o que intensifica o interesse na área escolhida.

Byington (2002), em artigo embasado na psicologia simbólica, realiza um estudo sobre os sentidos como funções estruturantes da consciência e da sombra individual e coletiva. As funções fisiológicas quando percebidas em seus significados simbólicos, formam funções estruturantes da consciência e representam um marco importante para ultrapassar a dissociação corpo-mente. Chama a atenção para o crescimento da consciência e a formação da sombra pela civilização, com ênfase na neuropsicofarmacologia. Considera que a visão e a audição tiveram maior desenvolvimento do que o olfato, paladar e o tato.

Luvizotto (1999) realizou um estudo, embasado na Psicologia Simbólica de Byington, sobre a alteridade nas obras de Caetano Veloso, propondo uma leitura simbólica deste compositor para a superação dos conflitos entre as culturas predominantemente patriarcais e as culturas predominantemente matriarcais. Discute ainda sobre a Tropicália, movimento musical dos anos 1960-70, com grande presença de Caetano, apontando para a possibilidade de superação da dominância patriarcal nos meios intelectuais a partir da valorização e da integração dos aspectos criativos do dinamismo matriarcal.

Os estudos, em síntese, apontam para a relação da música com o contexto social, sobre a importância do contato ou aprendizado musical desde a idade infantil e a formação integral do adolescente e jovem; outro aspecto está relacionado à música como um recurso terapêutico e linguagem que possibilita acessar a subjetividade individual em sintonia com o universal.

Novas indagações surgem a partir das minhas experiências com música e psicologia analítica (abordagem teórica adotada para este estudo): O que é música, do ponto de vista subjetivo e psíquico? O aprendizado da música, especificamente do piano, por ser este o instrumento com o qual tenho maior vivência, pode auxiliar no desenvolvimento saudável da psique? A música pode auxiliar na manutenção do eixo ego-Self? Quais contribuições a psicologia analítica pode oferecer a partir de uma leitura simbólica da música ou do ensino musical do piano?

Dessa forma, o objetivo deste estudo é compreender se tocar um instrumento musical, especificamente o piano e a conseqüente experiência com o som e a música, podem contribuir para promover um canal de abertura e expressão do Self.

Para a realização desta pesquisa, o Capítulo I trata sobre a Música, fazendo um breve percurso sobre a história da música ocidental, bem como as conceituações e as definições para música.

Já o Capítulo II trata do Piano, referindo sobre sua criação por volta de 1700 e também contando sobre as partes importantes que constituem a estrutura física do piano.

O Capítulo III é sobre a Fundamentação Teórica, apresenta os conceitos teóricos utilizados neste trabalho, que têm como base a abordagem da psicologia analítica de C.G. Jung.

O Capítulo IV apresenta o Método de pesquisa qualitativa dentro da abordagem da psicologia analítica, bem como os procedimentos para coleta e análise dos dados.

No Capítulo V é feita uma descrição dos Resultados, a partir dos instrumentos utilizados, que foram uma entrevista semi-dirigida e desenhos espontâneos. Este

capítulo foi subdividido em quatro partes, apresentando 1. Os dados das observações feitas pela pesquisadora; 2. A descrição da entrevista; 3. A descrição dos desenhos espontâneos; 4. Uma síntese dos desenhos organizada por aulas.

Dessa forma, no Capítulo VI, tais achados foram analisados e discutidos dentro da perspectiva da psicologia analítica.

Por último, o Capítulo VII trata das Considerações Finais, sinalizando para desdobramentos e conclusões da presente pesquisa.

CAPÍTULO I: A MÚSICA

Antes de falar sobre música é preciso resgatar sua constituição mais elementar, o som. O que é som? Som é energia e se propaga em ondas. O som é o resultado de um movimento vibratório da matéria, é energia que se propaga através de ondas mecânicas por um meio material, que pode ser sólido, como a terra, líquido, como a água, gasoso, como o ar. No vácuo, onde não há meio material, o som não tem como ser transportado e por isso, não se propaga. Percebemos os sons porque somos capazes de captar o movimento das ondas sonoras. Todo nosso organismo é capaz de sentir o movimento dessas ondas, porém, é o ouvido o órgão especializado para a captação dos sons e a sua transmissão para nosso cérebro. De acordo com o sinal enviado, nosso cérebro é capaz de identificar os sons (Vicki, 2009).

Já estamos imersos em sons antes mesmo do nascimento. Com poucas semanas de vida, o embrião humano começa a desenvolver a estrutura que dará origem aos ouvidos e cotidianamente ele vai se desenvolvendo em conjunto com os sons da batida cardíaca da mãe (Gaynor, 2002).

Segundo Goes (2008), o som faz parte da natureza humana e é anterior ao homem. Somos constituídos pela musicalidade desde dentro, há uma sonoridade especifica interna. Desde o momento da concepção, as células se agrupam e vibram em freqüências distintas. A estrutura molecular possui uma natureza sonora e cada pessoa tem uma formação celular particular. Cada ser humano nasce com a capacidade de emitir e receber essas ondas sonoras. Dessa forma, toda e qualquer tipo de sonoridade pode exercer influência no corpo e na mente, porém, o processo educacional, que em geral se volta com maior ênfase ao mundo externo, acaba por desprezar os sentidos internos e, conseqüentemente, a sonoridade de cada um. A autora vai avançar no sentido de apontar para a existência de uma musicalidade singular, ressaltando a importância de reconhecer qual é o som interno de cada um, uma vez que ele nos traz um referencial de como lidar com a música em nossas vidas.

Em uma definição estética pedagógica, Dantas (s/ano), de forma mais operacional, a música pode ser definida como som no tempo, constituído de elementos sonoros e rítmicos que juntos moldam o objeto música. Melodia, harmonia e ritmo são elementos que dão o formato à musica: a melodia é entendida como uma sucessão de sons que são organizados por freqüências sonoras especificas e padronizadas; quando estes sons são executados simultaneamente, configuram a harmonia; já o movimento desses sons são determinados pelo ritmo, com maior ou menor duração, originário da própria sucessão dos sons no tempo.

Nesta mesma linha de compreensão, Pedron (1978) define música como arte de expressão; é por meio dos sons e de seus elementos que se torna possível traduzir ou evocar os sentimentos ou as impressões, seja com meios próprios ou com meios auxiliares de outras artes. Considera quatro elementos constitutivos da música: os três acima citados – ritmo, melodia e harmonia – e um secundário, o timbre. Segundo sua definição, o ritmo é o elemento primordial, é proveniente da noção de duração no tempo, é “medir com ordem o tempo mesmo” (p II). Já a melodia é menos Universal e menos antiga em relação ao ritmo. Ela passa a existir com o início do som e é “formada por uma sucessão de sons que diferem em sua duração, em sua altura e em sua intensidade”. Como está implicada a noção de duração na melodia, esta é, portanto, subordinada ao ritmo e em sua origem natural ela expressa a vida e os sentimentos, atingindo “sua natural origem das inflexões da palavra, das exclamações, dos gritos dos homens ou dos animais.” Já a harmonia, é a ciência dos sons expressos simultaneamente, tendo por base o acorde, isto é um conjunto de sons simultâneos provenientes de um único som gerador. Por fim, o timbre é representado pela diferença de impressão existente entre dois sons de duração, altura e intensidades iguais, importante do ponto de vista da cor na arte musical.

Mario de Andrade, em sua obra “Pequena história da música” (2003) relata que, certamente, os principais elementos formais da música são o Som e o Ritmo, e que estes são tão velhos quanto o Homem, que os possui em si mesmo, pois os movimentos do coração, a respiração, o passo, as mãos batendo já são elementos rítmicos, e a voz produz o som. Dentre esses elementos, o ritmo tem importância primordial na organização da vida humana, tanto social como individual e já entre os

povos primitivos o ritmo era bastante desenvolvido. A música primitiva tinha pouca melodia e era primordialmente rítmica. Em termos fisiológicos, tal música se caracteriza por uma expansão impulsiva e instintiva do movimento sonoro, despreocupada de organização e de estética, e de determinação inconsciente, de um corpo que se põe a cantar e se expande em voz, condicionada apenas pelos ciclos culturais das tribos. Agindo com grande poder sobre a parte física do ser, o ritmo provoca uma ativação muito forte do ser biológico total, não só físico, mas na complexidade maior do seu psiquismo. O ritmo está ligado ao corpo, ele “mexe” com as pessoas e sua dinâmica temporal e monótona produzia nas tribos primitivas a absorção do individuo pela coletividade, socializando-o, determinando um movimento coletivo e favorecendo, por suas próprias características pouco conscientes, os efeitos mágicos de encantação. A música mágico-ritual era transmitida sempre cuidadosamente de geração a geração e guardada pelos feiticeiros das tribos.

Em termos coletivos, Naranjo (1990) afirma que a música sempre esteve presente, deste os tempos mais remotos aos dias atuais. Como já visto acima, existem diversas definições sobre “o que é música”, do ponto de vista pedagógico, estético, crítico musical. Todavia, de maneira geral, podemos defini-la como uma forma de expressão universal, que se molda em relação à cultura, à sociedade e ao tempo. Em todas as culturas e nações se faz música, como se a construção musical se constituísse para o ser humano como uma necessidade essencial. A música não só expressa algo, ela reflete prazer, dor e os vários estados da mente cotidiana. Serve também como um veículo à expressão das vivências espirituais, ao se buscar o conteúdo espiritual da música não a reduzimos apenas a um “prazer do ouvido”, mas nos voltamos a um modo de vincular-se consigo mesmo, com o mundo e, transcendendo os conteúdos individuais da mente, com o Ser. A música, seja ela produzida pela voz, por instrumentos ou por ambos, restaura a ligação que temos com um domínio que fica além da percepção consciente, da essência, e, portanto, religa ao cosmos. A música, nesse sentido, pode ser definida como a linguagem do espírito e como forma ressonante de padrões universais.

No que se refere à universalidade do som musical, Fonterrada (2004) ao tratar da relação entre a música e a ecologia musical, aponta a importância do som

para o homem desde tempos imemoriais, espelhando-se em narrativas que explicam a origem do mundo e em como a música se faz presente nos mitos, lendas e fábulas. Para a autora, a música é feita de sons que são organizados pelos músicos. “é isso que o músico faz quando faz música: cria sons, junta alguns deles a outros, empilha-os, ou põe lado a lado (…) é como uma grande brincadeira de montar e desmontar, em que as “peças” (…) são sonoridades” (p.8). Acrescenta ainda que a língua é feita de sons, com eles nomeamos objetos, comunicamos, criamos mundos, sonhamos.

Segundo a autora (Fonterrada, 2004), tanto nas sociedades orais quanto em povos da Antiguidade, existem três pontos ligados ao papel desempenhado pelo som: O primeiro é sua função criadora, representada por diversos mitos que explicam a origem do mundo pelo som, como por exemplo, a expressão do Evangelho de São João no Novo Testamento da Bíblia: “No princípio era o Verbo”, o mundo foi criado pelo Verbo, sendo possível compreender que com o Som das suas palavras Deus fez nascer o mundo. Nos mitos de criação de Hopis (tribo indígena norte americana), as criaturas procederam do diálogo, resultante da conversa entre dois deuses. No Egito, o deus Ptah concebe os poderes do universo em sua mente e os traz à existência por meio da fala; aqui, o ato da fala (divina força criativa original) é transmitido para as criaturas (seres criados), que ao usarem-na também se tornavam criativas. O segundo ponto trata dos fenômenos sonoros da natureza, interpretados como vozes divinas. O trovão e o raio, os sons do vento e das águas, por exemplo, eram manifestações dos deuses reafirmando aos humanos o seu poder. O terceiro ponto diz do significado original das palavras, com ênfase inicial nas sonoridades, uma das características da palavra mágica. A autora ainda vai aponta a presença do som e da música nos mitos, lendas e fábulas, como no mito de Orfeu, que quando cantava e tocava, os animais da floresta e as árvores ficavam fascinados com o poder da sua música; o mito de Sirinx, bela que desprezou Pã e se tornou junco, dos quais Pã construiu uma flauta que se chamou Sirinx e, cada vez que se tocava, ouvia o triste som da Ninfa; a lenda das sereias com seus cantos avassaladores e sedutores; “Joãozinho e o pé de feijão” que traz do castelo encantado o saco de moedas, a galinha de ovos de ouro e a harpa encantada, que os coloca em um estado de felicidade com os sons celestiais que emite. Embora hoje não se tenha uma preocupação voltada para o divino, para a natureza ou à

magia, os sons encantam, provocam e mostram que a arte ainda detém o poder de criação e transformação.

É com a passagem do contexto politeísta para o monoteísmo, com a ascensão do Cristianismo e com o homem como centro do Universo que a música sofre modificações. A música, antes considerada de origem divina, integrada às condições de vida e do cotidiano dos povos, assimila, no século XVI, o desejo pela medida e proporção. O grande interesse pela ciência traz à música a presença marcante do rigor e controle, desenvolvendo uma técnica escrita e elaborada, como é possível ouvir nas obras de Vivaldi, Bach e contemporâneos. Além disso, os instrumentos musicais não são mais elementos rústicos da natureza (casco de tartaruga, peles de animais, troncos), tornam-se manufaturados, visando técnicas apuradas de fabricação e melhor controle da afinação (Andrade, 2003; Fonterrada, 2004).

O período Renascentista (1450-1600) pode ser caracterizado por grande interesse na cultura, em especial a idéias dos gregos e romanos, de avanços territoriais para outros continentes e desenvolvimento da ciência e da astronomia. O pensamento grego influencia na elaboração de teorias e sistemas musicais, especulativos e organizados segundo os pensamentos de Platão e Pitágoras, que herdam seus conhecimentos do Oriente, o que se evidencia nas fortes relações entre música, cosmos e matemática. O homem passou a explorar também os mistérios de suas emoções e de seu espírito, desenvolvendo uma percepção refinada de si e do mundo ao seu redor. Passou a observar, questionar e deduzir, o que provoca forte impacto na arte e, em conseqüência, na criação artística. O desenvolvimento do Humanismo, que se caracteriza, sobretudo, pelo estudo da Antiguidade clássica volta-se para o raciocínio e a discussão estética que resulta, na música, no estudo da Harmonia, com a fusão dos sons, da Polifonia e do desenvolvimento de peças instrumentais, que no período seguinte, no Barroco (séc.

XVII) passa a ter a mesma importância da música vocal. Surgem diversas formas e concepções, com as fugas, sonatas, prelúdio coral e o concerto. É no período Clássico (sec. XVIII) que pela primeira vez a música instrumental teve mais importância do que as composições para canto, com especial destaque para as composições feitas para o pianoforte. O piano foi inventado na Itália, por Bartolomeo

Cristofori, que se diferenciou do cravo, pois as cordas são batidas com martelos e não mais tangidas por metais. Isso proporcionou grande poder de expressão, o pianista poderia dosar o contrate entre forte e suave, ter o controle do volume sonoro e das múltiplas nuances que permeiam os sons, ligados ou curtos e destacados, com melodia em uma mão e acompanhamento em outra. Foi o período de grandes compositores como Bach, Mozart, Haydn, Chopin (Bennett, 2007).

Depois deste período, chegamos ao século XX, com máquinas e guerras, fábricas e ruídos do mundo que se intensificam, a música do novo século assimilou os ruídos e os integrou aos “sons musicais”. As novas tecnologias, a partir da metade do século, promovem experimentos sonoros, como a fita magnética e os geradores de som, despertando para a música eletrônica. Outras estéticas também surgem, afastando-se da ciência e da lógica, em exploração do inconsciente, o acaso e a livre experimentação musical (Fonterrada, 2004).

A música e o instrumento não existem sem o músico que coloca o elemento som em movimento, nem a música sem o ser humano que a manifesta. É a expressividade humana do gesto intencional que une as notas e nas aberturas entre as notas que se preenche o ato. Tal ato assegura a vivência e a espontaneidade do fazer musical. Mesmo entre os filósofos, a música é concebida como uma linguagem do espírito e como forma ressonante de padrões universais. Indicar o conteúdo espiritual da música implica em constituir um modo de vincular-se consigo mesmo e com o mundo e, para além dos conteúdos individualizantes da mente, com o Ser. A razão para a existência da música e do músico é a possibilidade de expansão da consciência. A magia da música e seu verdadeiro mistério estão na capacidade de fazer progredir e melhorar o destino dos espíritos humanos. O músico deve construir um novo mundo, que não existe enquanto ele não o coloca. A época atual exige que o músico, isto é, o ser humano, seja tão autentico quanto uma música, se o ser do músico está bem formado, a sua música terá uma boa forma. Para o autor, no futuro florescerão músicos, mas o espírito musical deverá se expandir para tudo, mostrando-se no ser do homem e nos atos por ele executados (Fregtman e Gismonti,1989).

CAPÍTULO II: O PIANO

No período Barroco (1600 – 1700), a música instrumental passa a ter, pela primeira vez, a mesma importância que a música vocal. A palavra “Barroco” é de origem portuguesa e significa pérola ou jóia de formato irregular. O termo foi usado pelos músicos para indicar o período da história que vai do aparecimento da ópera até a morte de J. S. Bach. As flautas e cornetos medievais continuaram sendo utilizados e instrumentos originados do período anterior, Renascentista (1450 – 1600), como as violas, o trompete foram modificados, aperfeiçoados e muitos foram inventados. Além de flautas, alaúdes, violas, havia também um instrumento de teclado, como um pequeno órgão, ou um clavicórdio, cujas cordas eram batidas por cunhas de metal. Esta era uma forma simplificada do cravo, pois cada nota tinha uma só corda que corria paralelamente ao teclado. Foi durante o período Clássico (1750 – 1810) que pela primeira vez em toda a história da música as obras para instrumentos passaram a ter mais importância do que as composições para canto. Muitas foram escritas especialmente para o pianoforte – em geral chamado piano – e outras o incluíam ao lado de outros instrumentos (Bennett, 1982; 2007).

O piano foi inventado, provavelmente, em 1698, na Itália, por Bartolomeo Cristofori, que, por volta de 1700 já havia concluído a construção de pelo menos um instrumento. Foi chamado de “gravicembalo col piano e forte” (em italiano, que significa “cravo com suave e forte”). Diferente do cravo, em que as cordas são tangidas, aqui elas são batidas por martelos de madeira, suavemente ou com força, dependendo da pressão dos dedos do executante sobre as teclas. Isso deu ao piano grande poder de expressão e abriu possibilidades novas e fascinantes. O pianista não só pode dosar os contrastes entre forte e suave, como também ter o controle do volume sonoro e das múltiplas nuances que permeiam os sons, podendo se tornar gradualmente mais fortes, suaves, ou executar contrastes entre o legato (em italiano, que significa melódico e sustentado) e o staccato (curto e destacado). O executante pode moldar uma melodia expressiva pela mão direita, enquanto um acompanhamento suave é desenvolvido pela esquerda. No começo, não foi muito reconhecido, em virtude da precariedade dos primeiros modelos. Por volta de 1760

vários compositores começaram a se voltar para o piano e no século XVIII o cravo já havia caído em desuso, amplamente substituído pelo piano (Bennett, 1982; 2007).

No século XIX, no Romantismo, o piano passou por diversos melhoramentos. O número de notas aumentou, os martelos, antes cobertos de couro passaram a ser revestidos de feltro, as cordas mais longas e grossas. Isso contribuiu para que a sonoridade do instrumento ficasse mais rica e cheia, aumentando suas possibilidades em temos de registro, volume e intensidade. Os compositores românticos começaram a explorar toda a extensão do teclado, escrevendo texturas ricas e variadas, como Schbert, Mendelssohn, Chopin, Schumann, Liszt, Bach, Bethoveen, entre outros.

Hoje o piano é um instrumento musical de corda percutida. Selecionamos aqui algumas partes que constituem a estrutura de um piano e suas funções (Wikipédia, 2009):

– Teclado: no geral, contendo 88 teclas, sendo que as notas naturais (dó, ré, mi, fá, sol, lá e si) são brancas e as teclas dos acidentes (dó#, ré#, fá#, sol# e lá# sustenidos ré♭, mi♭, sol♭, lá♭ e si bemóis) são da cor preta. São feitas em madeira, as pretas são revestidas geralmente por ébano e as brancas marfim ou, atualmente, material plástico. O teclado está dividido em 7 oitavas1. Quanto mais oitavas possuir um instrumento, maior as possibilidades de combinações harmônicas e melódicas. Estão distribuidas de maneira que as mãos e os olhos possam abranger toda sua dimensão, centralizados no que se chama “dó central”.

– Tampa harmônica de ressonância: é uma tampa de madeira com leques (pequenas ripas de madeira), que devem ser cuidadosamente selecionados para

1 O nome de oitava tem a ver com a sequência das oito notas da escala maior: dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó, a que se chama igualmente “uma oitava”. é o intervalo entre uma nota musical e outra com a metade ou o dobro de sua frequência. Um som cuja frequência fundamental é o dobro de outra evoca quase a mesma sensação do que esse som, ou seja, é a mesma nota musical, apenas mais aguda (mais “alta”) ou mais grave (mais “baixa”). Como as duas notas têm quase a mesma série de harmônicos, são apercebidas como tendo uma relação especial (têm o mesmo chroma). Ou seja, pode-se aumentar ou diminuir um intervalo do dobro – mudando significativamente o seu som – sem essencialmente mudar o seu significado harmónico. É o que se chama a “equivalência das oitavas” (Wikipédia, 2009).

exercer a função sonora, de forma que faça com que o som se espalhe por toda a tábua harmônica.

– Máquina do piano: a maior parte das peças da máquina são feitas de madeira, de forma artesanal. É formada por 35 sistemas de ação, incluindo amortecedores, abafadores, martelos de madeira, tecla, e feltros com uma textura específica, cuja finalidade é prmover um som mais forte, homogêneo e doce.

– Pedais: Possui três pedais, um chamado surdina, que diminui a força da pancada, o que proporciona um som de menos volume; o sustain, que permite que o som vibre livremente (como a ressonância do eco); e o abafador, em que se desce uma barra de feltro cuja função é abafar o som.

– Jogo de cordas: são cordas e bordões de aço ou cobre de diferentes cumprimentos e espessuras, respeitando uma proporção matemática entre a espessura da corda e seu cumprimento para que atinja corretamente seu ponto de afinação. No piano, existem notas com 1, 2 e até 3 cordas. Quando a nota tem mais de uma corda, essas deverão ter a mesma espessura.

O piano é considerado um instrumento de percussão, porque o som é produzido quando os batentes, cobertos por um material macio e designados martelos, quando ativados através de um teclado, tocam nas cordas esticadas e presas numa estrutura rígida de madeira ou metal. Porém, diferentemente dos instrumentos de percussão, ritmicos, o piano possibilita também a expressão melódica e harmônica, pois permite a execução da escala musical. Isso garante grande versatilidade, possibilitando performance solo, ou acompanhamento e também auxiliar para compor.

Como instrumento de cordas percutidas por mecanismo ativado por um teclado, o piano é semelhante ao clavicórdio e ao cravo. Os três instrumentos diferem no entanto no mecanismo de produção de som. Num cravo as cordas são beliscadas. Num clavicórdio as cordas são batidas por martelos que permanecem em contacto com a corda. No piano o martelo ressalta de imediato após tocar nas cordas e deixa a corda vibrar livremente. As cordas vibram e por meio da vibração livre os sons são produzidos.

CAPÍTULO III: FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

“O nascimento”

Do símbolo a vida Do som um sentido.

Da música um conjunto para Conviver em comunidade.

(Juliana, Maio de 2009)

O referencial teórico no qual está pesquisa esta embasada é a psicologia analítica desenvolvida a partir da experiência psiquiátrica do médico suíço Carl Gustav Jung (1875-1961).

Filho de religiosos luteranos, desde cedo questionava sobre Deus e sobre a origem e finalidade da vida humana. Recebeu influência de diversos pensadores como Bleuler, Adler, Freud, os filósofos Schopenhauer, Nitzsche, Kant, além de experiências advindas da Alquimia, da Mitologia, dos povos primitivos, orientais e das religiões para pensar sobre a psique e sua dinâmica. Introduziu uma nova maneira de praticar a psicologia clínica, a partir de uma visão de mundo e do homem e de uma compreensão simbólica da realidade.

Em sua perspectiva, fazer ciência é a possibilidade de integração entre opostos, o objetivo e o subjetivo, é ser no mundo com uma consciência diferenciada e ampliada. Entre os conceitos desenvolvidos, Jung relata sobre a existência de uma personalidade total ou psique, apresenta o Self como parte central da personalidade, sendo esta estruturada em sistemas diferenciados e atuantes entre si, dos quais podemos citar o ego, o inconsciente pessoal e coletivo, os arquétipos e complexos, os quais serão discriminados a seguir (JUNG, 2000).

1. Self

Para Jung (1964), o Self representa a personalidade total que engloba o consciente e o inconsciente. Essa totalidade pode ser percebida como um sentimento de totalidade, ou seja, um sentido poderoso e completo do todo. É do Self, da totalidade da psique, que emerge a consciência individualizada do ego no decorrer do desenvolvimento.

Self ou Si mesmo também é entendido por Jung como o arquétipo central, é o centro de toda a personalidade, de onde emana o potencial energético do qual a psique dispõe. É o centro organizador e ordenador dos processos psíquicos, integrando e equilibrando aspectos inconscientes e conscientes. É o centro da totalidade da mesma forma que o ego é o centro da consciência. Segundo Jung:

“O Si mesmo representa o objetivo do homem inteiro, a saber, a realização de sua totalidade e de sua individualidade, com ou contra sua vontade. A dinâmica desse processo é o instinto, que vigia para que tudo o que pertence a uma vida individual figure ali, exatamente, com ou sem a concordância do sujeito, quer tenha consciência do que acontece, quer não (JUNG, 1991).

Há no ser humano um potencial inato para fazer conexões entre o conhecido e o desconhecido, entre as aparentes oposições e isso acontece por meio de vivências simbólicas. No início do desenvolvimento, ocorre a diferenciação do ego em relação ao Self. No processo de individuação e nos estágios de desenvolvimento, o ego possibilita a ampliação da consciência e a re-conexão entre mundo consciente e inconsciente por meio de um movimento não fixado e fluído que permite a saúde psíquica. O diálogo com inconsciente interligado ao consciente, ao conhecimento subjetivo e objetivo, possibilita a integração dos aparentes opostos, englobando as polaridades, conduzindo à noção do Self e totalidade (Pereira, 1999).

2. Projeção e Identificação

Projeção, segundo Jung [1935] (1991), é um mecanismo de defesa em que os conteúdos subjetivos são transferidos para um objeto ou pessoa, o ser humano enxerga conteúdos que pertencem a ele, em outra pessoa, porque naquele momento são incompatíveis com a sua personalidade. A projeção é sempre inconsciente e faz com que a pessoa acredite verdadeiramente que tais conteúdos pertencem ao outro.

Ao se relacionar com outra pessoa os aspectos desconhecidos da personalidade ou rejeitados são projetados. Withmont (1994) afirma que o mecanismo de projeção é importante para a ampliação da consciência. Tais conteúdos podem ser novamente reintegrados à consciência quando a pessoa percebe que aquele aspecto faz parte de sua personalidade. É através da projeção que acontece o primeiro estágio de conscientização, quando se inicia o processo de tomada de consciência dos conteúdos inconscientes necessários ao desenvolvimento da consciência, desde que recolhidos e integrados ao consciente.

Já a identificação é um mecanismo que pode ser consciente ou inconsciente e pode acontecer quando se admira uma pessoa e se tenta imitá-la, de forma consciente ou inconsciente, e tem-se como finalidade se ajustar a ele (Withmont (1994).

3. Ego e Consciência

Para podermos definir o que é “consciência do ego” é preciso, primeiramente compreender “ego” e “consciência”. Nesse sentido, ego é uma palavra de origem latina que significa “eu” e, em termos técnicos, refere-se à experiência que a pessoa tem de si mesma e à percepção de possuir um centro de vontade, de desejo, de

reflexão e de ação, constituindo, portanto, como o centro do campo da consciência e sujeito de todos os atos conscientes da pessoa.

Já consciência, também derivada do latim, significa conhecer algo desconhecido. A consciência possibilita perceber os próprios sentimentos, observar e registrar o que acontece no mundo em torno de nós e dentro de nós mesmo. É o estado de conhecimento e entendimento de eventos externos e internos, uma pré- condição para a humanidade e para tornar-se indivíduo, um fator vital que pertence aos corpos vivos e que durante o desenvolvimento conteúdos específicos vão sendo absorvidos por ela (STEIN, 2006).

A consciência é um campo que tem o ego como seu centro. O ego é o ponto focal no interior do campo da consciência, seu centro crítico, e de fato, determina em grande medida quais conteúdos podem permanecer no domínio da consciência e quais devem voltar, pouco a pouco, para o inconsciente.

Temos percepções internas e externas que vão se diferenciando no decorrer do desenvolvimento. A criança nasce imersa no inconsciente e no decorrer do tempo ela passa a perceber a si mesma e aos outros de modo separado, propiciando o desenvolvimento da consciência e do ego. O desenvolvimento egóico se dá durante todo o processo vital, permeado por conflitos entre as percepções internas e externas, consolidando a identidade do ego, cuja função é o desenvolvimento e organização da personalidade. Segundo Whitmont (1994), tal desenvolvimento significa configurar, ele mesmo, uma identidade e uma organização em termos de uma adaptação externa.

O processo de desenvolvimento da consciência acontece a partir de um distanciamento da matriz originária que é objetiva, para a estruturação do eu subjetivo. Em termos analíticos, o início do desenvolvimento da psique acontece a partir do estado urobórico original e cotidianamente o ego vive experiências que permitem a ampliação da consciência, com alternâncias entre estados de inflação e alienação egóica.

Entretanto, ao se estruturar, o ego pode fechar-se em si mesmo, tornando-se unilateral. O desafio, portanto, do ego é abrir-se para as potencialidades presentes

no inconsciente, para o novo, em constante adaptação à vida externa, mantendo o diálogo inconsciente/ consciente. A re-conexão entre consciente e inconsciente, em um movimento não fixado e fluído entre as polaridades possibilita a saúde psíquica (Pereira, 1998).

4. Inconsciente pessoal e coletivo

Outro conceito relevante para a psicologia analítica é a definição de inconsciente. A consciência, para Jung, é a camada mais superficial da psique que abarca apenas o que está ao alcance da percepção do ego. Em termos psicológicos, segundo Jaffé (2002) existe também uma realidade que transcende a consciência e aparece como pano de fundo espiritual do mundo, como uma ampla camada de potencialidades que não podem ser focalizadas em sua totalidade pela consciência, e que se mantém imersa no inconsciente.

“O inconsciente é a mãe criadora da consciência. A partir do inconsciente é que se desenvolve a consciência durante a infância, tal como ocorreu nas eras longínquas do primitivismo, quando o homem se tornou homem” (Jung, [1967] 1999, p. 120).

Jung ampliou a perspectiva freudiana de inconsciente, concebendo-o não apenas como um repositório das memórias e das pulsões reprimidas, mas também como um sistema vivo em constante atividade, que pode abarcar também conteúdos pessoais quanto aqueles comuns a toda a humanidade. Para uma compreensão didática, o inconsciente pode ser definido em duas esferas, o inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo.

No inconsciente pessoal há conteúdos, vivências, emoções que ficaram reprimidas durante o desenvolvimento e também potencialidades nunca acessadas pelo indivíduo e que se encontram numa esfera esquecida que é o incosnciente coletivo, com elementos que também poderiam aflorar à consciência:

“Acentuamos, portanto, que, além do material reprimido, o inconsciente contém todos aqueles componentes psíquicos subliminais, inclusive percepções subliminares dos sentidos (…) também inclui componentes que ainda não alcançaram o limiar da consciência. Constituem eles as sementes de futuros conteúdos conscientes (…) são pessoais na medida em que foram adquiridos durante a existência do indivíduo.” (Jung, [1928] 2001, p. 4).

Além do inconsciente pessoal, Jung define também a existência de um inconsciente coletivo e universal, uma camada mais profunda da psique e formada pelos arquétipos, constituídos por bases da raça humana e universais.

Segundo Jaffe (2002) as camadas mais profundas da psique perdem a sua singularidade individual à medida que aumentam a profundidade e aproximam-se dos sistemas funcionais autônomos, tornando-se progressivamente mais coletivas até se universalizarem e desaparecerem na materialidade do corpo, nas substancias químicas. É uma herança de possibilidades de expressão de sentimentos, sensações, pensamentos, emoções, experiências, imagens, comportamentos frente a vivências pessoais e originárias de uma herança constituída por toda espécie humana e expressa por mitos, contos de fadas, expressões artísticas e musicais que mobilizam o ser humano em qualquer época da humanidade.

5. Complexo e Arquétipo

Jung [1936] (2000), define Complexo como agrupamentos psíquicos inconscientes que são carregados de afetividade e que gravitam em torno do ego, sendo capazes de gerar perturbações na vida da pessoa. São provocados pelo confronto do indivíduo com o meio externo, como memórias ou eventos traumáticos reprimidos. O complexo é autônomo, ou seja, ele independe da vontade do ego. Quando constelado, pode gerar atitudes não percebidas invadindo a consciência, trazendo perturbações quando aparece como negativo. Quanto mais próximo, mais consciência a pessoa tem de sua existência, e menor, portanto, a sua autonomia.

“Enquanto o inconsciente pessoal consiste em sua maior parte de complexos, os conteúdos do inconsciente coletivo são constituídos essencialmente de arquétipos.” (Jung [1936] (2000), p. 53).

Um complexo tem sua energia inicial localizada no inconsciente coletivo, possui um núcleo arquetípico, mas ganha forma através das vivências pessoais de cada indivíduo, com um revestimento pessoal.

Jung define Arquétipo como “o cerne da semente, impossível de ser trazido à consciência – a esfera do mundo arquetípico (…)” (p 41, [1935] 1991) com conteúdos que aparecem sob a forma de imagens que podem ser entendidas quando comparadas com paralelos históricos. Os arquétipos são conteúdos presentes nas camadas do inconsciente coletivo comuns a todos os seres humanos. Não podem ser acessados diretamente, porém tais camadas podem ser alcançadas por meio de representações arquetípicas, através de manifestações pessoais e culturais, como sonhos, produções artísticas, mitos, contos de fadas.

Segundo Stein (2006), o arquétipo pode ser entendido como “um padrão potencial inato de imaginação, pensamento ou comportamento que pode ser encontrado entre os seres humanos em todos os tempos e lugares” (p. 205).

Jacobi (1990) acrescenta que os arquétipos estão no fundo primário da psique como “pontos de nós” e “núcleos de significados” carregados por uma energia psíquica ilimitada, originária da própria estrutura psique e que formam o inconsciente coletivo. Dessa forma, o arquétipo, no inconsciente coletivo, ocupa uma posição de “elemento nuclear” invisível e também como “suporte potencial de significado”. Sua constelação pode ser individual ou coletiva, sendo que a constelação individual é resultado da situação da consciência do indivíduo, ao passo que a coletiva resulta da situação respectiva de grupos humanos.

5.1 Arquétipo materno

Segundo Jung [1936] (2000), o arquétipo materno possui uma variedade in- calculável de aspectos, sendo a primeira forma que toma para o indivíduo a experiência da anima. Esta apresenta um aspecto construtivo e outro destrutivo. É um arquétipo onde se origina todos os instintos, a totalidade de todos os arquétipos, o lugar de experiência supra-individual. E, por sua qualidade de fonte, pode voltar-se contra o consciente nascido dele e destruí-lo, sendo devorador, indiferente ao individuo, absorvido pelo ciclo cego da criação. Para o filho, a mãe continua exercendo uma fascinação inconsciente e que pode ameaçar paralisar o desenvolvimento do eu. A mãe pessoal recobre o arquétipo da mãe, símbolo do inconsciente, que passa a ser visto como sendo hostil, assustador e dominador.

São atributos essenciais do arquétipo materno: o “maternal”, simplesmente a mágica autoridade do feminino; a sabedoria e a elevação espiritual além da razão; o bondoso, o que cuida, o que sustenta, o que proporciona as condições de crescimento, fertilidade e alimento; o lugar da transformação mágica, do renascimento; o instinto e o impulso favoráveis; o secreto, o oculto, o obscuro, o abissal, o mundo dos mortos, o devorador, sedutor e venenoso, o apavorante e fatal.

6. Símbolo e função trancendente

O homem vive em um Universo simbólico e a vivência simbólica é uma característica do ser humano, a partir da qual ele dá significado ao mundo. A atribuição de significado é inerente ao sistema psíquico e é um instrumento importante para o seu desenvolvimento. A origem da palavra “Símbolo” é grega – Symbolon – e significa sym= junto/com e bolon= aquilo que foi colocado junto. Os gregos relacionavam às duas metades de um objeto. Segundo Edinger (1995) antigamente as pessoas dividiam entre si duas partes de um mesmo objeto como sinal de compromisso em relação a algo. Ao serem unidas as duas metades comprovava a veracidade do acordo e a identidade do outro.

A psicologia analítica é uma abordagem simbólica e por isso é importante atentarmos para a definição de símbolo. Segundo Jung [1952] (2007) o verdadeiro símbolo deve ser compreendido como uma idéia intuitiva que ainda não pode ser formulada de outra maneira ou de uma melhor forma, ou seja, são tentativas de traduzir uma coisa para a qual ainda não existe uma noção verbal.

“Assim, uma palavra ou uma imagem é simbólica quando implica alguma coisa além do seu significado manifesto e imediato. Esta palavra ou esta imagem tem um aspecto “inconsciente” mais amplo, que nunca é precisamente definido ou de todo explicado. E nem podemos ter esperança de defini-la ou explica-la. Quando a mente explora um símbolo, é conduzida a idéias que estão fora do alcance da nossa razão” (JUNG, 1964, p. 20-21).

O símbolo revela o inédito, o novo, o desconhecido e de forma complementar, une o seu conteúdo à consciência, que se amplia diante da possibilidade de dar significado. Como expressa o termo grego SYMBOLON, o símbolo possibilita a integração entre dois, entre inconsciente e consciente, isto é, permite o encontro do inconsciente com o consciente a partir do momento em que o seu significado pode

ser elaborado pelo ego. Depois de elaborado, ele deixa de ser um símbolo e amplia a consciência.

“Ao ser ‘tocado’ pelo consciente, o arquétipo per se pode se tornar manifesto e receber uma forma (…). A vestimenta do símbolo, na qual se torna visível, varia e se modifica conforme as circunstâncias internas e externas do homem e do tempo. Do contato com a consciência de uma coletividade e sua problemática nascem os símbolos coletivos (como, por exemplo, uma mitologia) e do contato com uma consciência individual e seus problemas nascem os símbolos individuais (como, por exemplo, a imagem de uma bruxa com as feições da mãe da pessoa).” (Jacobi, 1990, p. 107-108).

Na psicologia análitica, a responsável pela constituição do símbolo é a função transcendente. Através da formação do símbolo é possível o trânsito entre os pólos complementares, evitando a unilateralidade da psique e transformando a vivência simbólica, que antes era potencial, em realidade e ampliação da consciência. Nesse sentido, o símbolo é fundamental para a manutenção da saúde psíquica, por ser uma necessidade vital do ser humano e por possibilitar a transformação de um potencial a priori em ação concreta. Permite, ainda, a integração, evitando a unilateralidade e funcionando como um sistema compensatório de manutenção da saúde psíquica.

7. O processo de Individuação

Segundo Jung (1964) o processo de individuação é a harmonização do consciente com nosso próprio centro interior, que é o Self. Pode ser definido como “o tornar-se si mesmo”. Todo ser humano possui potencialidades que podem e devem ser desenvolvidas ao longo da vida. O processo de individuação conduz a pessoa em direção à integração de potencialidades inconscientes, que possibilita

uma experiência de pertencimento à uma totalidade, de completude e de verdadeira expressão do si mesmo. Nesse sentido, é fundamental a reintegração de aspectos que durante o desenvolvimento foram se discriminando e consolidando em estruturas psíquicas diferenciadas, mantendo, portanto, um diálogo contínuo entre ego e si mesmo. Acrescenta ainda que a individuação significa a realização melhor e mais completa possível das qualidades pertencentes ao coletivo do ser humano. A individualidade, por sua vez, compreendido no sentido de singularidade, deve ser expressa como uma combinação única, ou uma diferenciação gradual de funções que em si mesmas são universais. Da mesma forma que cada rosto humano possui um nariz, dois olhos, estes são singulares e peculiares em cada pessoa, mas também são universais na humanidade. Dessa forma, a individuação é um processo no qual o homem se torna o ser único que de fato é, procurando realizar a peculiaridade do seu ser. Além disso, o indivíduo humano, como unidade viva, é composto de fatores puramente universais, sendo, portanto, também um ser coletivo. Jung [1928] (2001) diz:

“Individuação significa tornar-se um ser único, na medida em que por “individualidade” entendermos nossa singularidade mais íntima, última e incomparável, significando também que nos tornamos o nosso próprio si-mesmo” (Jung, [1928] 2001, p. 49).

CAPÍTULO IV – MÉTODO

Este trabalho foi realizado a partir de uma perspectiva qualitativa, que é utilizada amplamente em ciências humanas. Privilegia o trabalho com um universo amplo de significados, de motivos, de aspirações, de crenças, de valores e de atitudes, o que corresponde ao espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis ou quantitativas. É feita por meio de um labor artesanal, utilizando para a sua realização a linguagem fundada em conceitos, proposições, métodos, técnicas e da criatividade. Nesta perspectiva o pesquisador é agente da construção do conhecimento, participa, está envolvido e interage com os demais participantes e com a situação de pesquisa, não tendo, portanto, uma postura neutra.

Segundo Penna (2005) o método indica o modo como o conhecimento será construído dentro de um paradigma. O embasamento teórico que fundamenta esta pesquisa é a psicologia analítica, proposta por C.G. Jung. No paradigma junguiano a perspectiva ontológica se refere à natureza da realidade, considerando as concepções do mundo, do ser e da psique. A noção de totalidade, de diversidade e unidade, são os pilares básicos dessa perspectiva. O mundo é concebido a partir de um dinamismo total, que integra microcosmo e macrocosmo. O ser humano, por sua vez, é uma totalidade que integra inconsciente e consciente e, enquanto microcosmo é parte integrante de um macrocosmo, compreendendo as esferas do inconsciente e consciência coletivos. Já a realidade psíquica confere substância à experiência interior, definindo mundo e ser humano por sua qualidade simbólica. Dessa forma o ser humano é um ser simbólico que vive em uma dimensão simbólica, na qual estão integrados aspectos biológicos, culturais, sociais, ambientais e espirituais em uma totalidade única e específica.

O inconsciente não é passível de observação direta, porém pode ser investigado e conhecido por meio das manifestações simbólicas arquetípicas. Dessa forma, o fenômeno investigado pela psicologia analítica é o símbolo, que congrega o âmbito pessoal e coletivo, a dimensão histórica e universal dos fenômenos psíquicos, podendo, quando elaborado, ser apreendido e compreendido pela

consciência. A relação entre pesquisador e fenômeno é uma relação dialética e simbólica em que ambos participam ativamente na construção do conhecimento. Dessa forma é fruto inevitavelmente da personalidade do pesquisador que necessariamente interfere no fenômeno estudado.

O método de investigação da psicologia analítica é caracterizado pelo processamento simbólico do material pesquisado, obtidos, geralmente, por meios projetivos como desenhos, técnicas expressivas, entrevistas semi-abertas ou dirigidas. O pensamento simbólico opera associações, comparações e analogias entre os diversos modos e conhecimento e funções da consciência. O conhecimento é produzido quando os aspectos do inconsciente ou da realidade existencial desconhecidos passam a compor a realidade ego-consciência, possibilitando a ampliação da consciência que, em termos científicos significa a produção do conhecimento (Penna, 2005).

1. Sujeito

Participou deste estudo uma pessoa adulta, sexo feminino, 28 anos, solteira, recepcionista, sem filhos, que buscou o aprendizado do piano por motivos de realização pessoal. Foi explicado a ela que o estudo visava compreender as transformações psíquicas decorrentes do aprendizado do piano.

A escolha da participante aconteceu após a observação da pesquisadora e verbalizações da aluna em relação aos benefícios que as aulas estavam proporcionando a ela. Esta, desde o início, mostrou-se bastante interessada em colaborar com um estudo de psicologia que buscasse compreender tais benefícios.

2. Instrumentos para a coleta de dados

Como instrumentos para a coleta de dados foram utilizados: observações da pesquisadora, entrevista semi-dirigida e desenhos espontâneos. A seguir, uma breve descrição de cada um dos instrumentos:

2.1 Observações da pesquisadora

Foram feitas anotações pela pesquisadora após cada aula de piano, com relatos sobre o desenvolvimento das aulas, as dificuldades e comportamentos percebidos, bem como as atitudes da aluna com relação tanto às músicas tocadas, quanto ao próprio piano.

2.2 Entrevista semi-dirigida (ANEXO 1)

A técnica da entrevista constitui uma situação de interação em que a palavra é, essencialmente, um símbolo de comunicação e os discursos são influenciados na relação com o entrevistador. Na entrevista semi-estruturada, suas qualidades consistem na possibilidade de enumeração de formas o mais abrangente possível de questões que o pesquisador quer abordar, a partir de suas hipóteses ou pressupostos, advindos da definição do objeto de investigação (Minayo, 1992).

2.3 Desenhos Espontâneos

Segundo Jung, o reino do inconsciente, coletivo ou pessoal pode ser representado na arte por meio das imagens e dos símbolos, expostos na pintura, escultura, literatura e em muitas outras formas de expressão artística, expressões

que surgem do lado criativo do ser humano. Jung percebia o valor dos desenhos, que contém símbolos do inconsciente, no entanto, não desenvolveu nenhum método para analisá-los.

A técnica dos desenhos espontâneos, utilizada para este estudo, segue os referenciais de Furth (2004), que incorporam as diretrizes de Susan Bach e Jolande Jacobi, apresentados de uma maneira mais prática, como definição de um método para decifrar a linguagem dos desenhos em uma abordagem junguiana.

Segundo Furth (2004), para ler os desenhos espontâneos e compreender seus significados é preciso, primeiramente saber em quais circunstâncias o desenho foi feito. São utilizados lápis de cor comum, lápis preto e uma borracha (a observação das partes apagadas leva a insigthts psicológicos das áreas de dificuldades que a pessoa está tentando definir) e folha de papel branco comum. A pessoa precisa de tempo para poder desenhar no seu próprio compasso. As instruções verbais são simples e curtas: ao entregar o papel e os lápis pede-se que ele desenhe o que ele quiser e se ele não conseguir pensar em nada, é possível dar-lhe algumas sugestões. Os desenhos podem ser executados em estilo livre ou sobre um determinado tópico. É importante que se dê o tempo necessário para se pensar depois da proposta inicial. Deve-se anotar a data e ordem dos desenhos atrás do papel após a execução. Após entregá-lo, aprecia-se e pergunta-se se a pessoa gostaria de dizer alguma coisa a respeito do desenho, escutando-o com muita atenção e tomando notas. Se algum objeto não é reconhecido, pede-se para “falar mais sobre este objeto”. Evitar perguntas diretas que levem a respostas “sim” e “não”, incentivando-o a falar mais sobre sua produção.

Furth (2004) utiliza o termo “pontos focais” para a compreensão dos desenhos, pois afirma que o interesse é literalmente em que se foca em um desenho, que dá a indicação de como abordar a psique da pessoa. Acrescenta que o estado da psique é determinado por uma combinação de vários pontos focais e suas características devem ser consideradas. Visando uma familiarização com as técnicas projetivas diagnosticas, tais pontos focais são amplos em sua extensão, visando facilitar o processo analítico ao sugerir questões e possíveis direções a serem adotadas. É preciso reconhecer que cada produção é absolutamente

individual, são criações subjetivas, em que a avaliação do conteúdo psicológico e do “sentimento” do desenho é o ponto mais significativo.

A regra inicial na interpretação dos desenhos é saber que não sabemos. A partir disso, três princípios básicos devem ser seguidos (Furth, 2004):

– O primeiro princípio é sempre estar atento à primeira impressão causada pelo desenho.

– O segundo, é que o analista aja como um pesquisador. A manifestação inconsciente em cada desenho deve ser analisada de maneira objetiva, considerando as reações objetivas ao material apresentado, às formas do desenho e os pontos focais. Deve-se, portanto, perguntar sobre a qualidade do material apresentado, o tamanho do papel e se há uma relação de equilíbrio (imaginando um aspecto complementar ou compensatório de uma introversão ou extroversão), a posição em que o desenho foi feito no papel (os horizontais tendem a contar uma história e os verticais, a fazer uma declaração), tentando compreender o que se pretende dizer com esse posicionamento logístico no papel. No que se refere aos pontos focais, alguns exemplos que o pesquisador deve olhar são: cor, forma, direção de movimento, posicionamento, número de objetos repetidos, item omitidos. Os pontos focais não são receitas, mas indicadores de um caminho possível que auxiliam como ferramentas analíticas flexíveis.

– O terceiro e mais difícil é sintetizar o que se descobriu a partir dos componentes individuais e reunir essas informações em um todo. Pode ser útil e produtivo conhecer definições e avaliações coletivas de interpretações simbólicas, porém sem apoiar-se nelas de maneira exclusiva.

3. Procedimento para a coleta dos dados

Os dados foram coletados na casa da pesquisadora, antes e depois da aula de piano, durante cinco semanas consecutivas. Inicialmente foi realizada a

entrevista semi-dirigida, em situação face-a-face, que ocorreu em um ambiente tranqüilo, com a presença apenas da pesquisadora e da entrevistada. O objetivo foi identificar a história musical e do piano na vida da aluna. Foi gravada e transcrita integralmente.

Uma segunda etapa para a obtenção dos dados constou da solicitação de dois desenhos espontâneos realizados em cada aula, um antes do inicio das atividades no piano e outro após a aula. Tal atividade foi executada no decorrer de cinco aulas, em cinco semanas. Algumas vezes, sobretudo nos desenhos iniciais, a participante mostrou dificuldades para executar a proposta e dessa forma, foram dadas sugestões, como por exemplo, que ela procurasse expressar como estava se sentindo no momento. Ou, sobre sua história com o piano, e como isso poderia ser expressão no desenho.

4. Procedimento para a análise dos dados

4.1 Entrevista semi-dirigida

Os dados obtidos na entrevista foram classificados em três categorias para permitir e facilitar sua análise, que foi no referencial da psicologia analítica. Essas categorias foram: 1ª A história de vida; 2ª A relação com a música; 3ª A relação com o piano.

4.2 Desenhos Espontâneos

Numa primeira fase, os aspectos expressivos dos desenhos foram analisados, como já foi dito anteriormente, segundo o referencial de Furth (2004). Numa segunda fase, foi feita uma análise simbólica do material apresentado, segundo o referencial da psicologia analítica.

CAPÍTULO V – RESULTADOS

Neste capítulo foram levantados os dados colhidos durante a pesquisa e que foram organizados em três tópicos, a saber:

1 – Observações da pesquisadora: foi feita uma breve descrição do histórico das aulas de piano da participante, bem como dos momentos de realização da entrevista e dos desenhos;

2 – Entrevista: este tópico trata da descrição e análise da entrevista;

3 – Desenhos espontâneos: apresenta a análise das expressões segundo o referencial de Furth (2004);

4 – Síntese dos desenhos espontâneos organizada por aula.

1 Observações da pesquisadora

Juliana (nome fictício) tem 28 anos, solteira, sem filhos, finalizou o ensino médio e fez técnico em química e nutrição. Tem uma irmã mais nova e a mãe e seu pai faleceu há cinco anos. Trabalha como recepcionista de um ambulatório de saúde. Desde o inicio do ano (2009) optou por vivenciar a vida religiosa e mora, atualmente, em um convento. Deve, até o final do ano, decidir-se pela carreira religiosa ou não.

Iniciou as aulas de piano em janeiro de 2008, quando tinha 26 anos. No momento estava estudando para o vestibular de engenharia, fazia cursinho no período noturno e trabalhava meio período. Fez aulas semanais até Julho de 2008 quando encerra dizendo que por estar se preparando para o cursinho, não teria tempo para vir às aulas. Entra em contato novamente em Setembro, com grande desejo de retomá-las. Reiniciamos as atividades em Outubro de 2008 e Juliana continua tendo aulas semanais, com duração de uma hora até o momento atual (Julho de 2009).

Sempre falou pouco nas aulas, chegava quieta, sentava-se ao piano e geralmente, eu fazia algum comentário geral sobre o tempo ou as lições do dia. Suas falas eram sempre por meio de estimulações iniciais minhas. O foco sempre esteve centrado no contato com o piano e nas minhas intervenções. Aprendeu a leitura e escrita das notas musicais e de partituras nível iniciante; no início tinha dificuldade na articulação das duas mãos juntas, e, principalmente, na compreensão da melodia e do ritmo musical.

Com o passar do tempo, foi relatando, timidamente, benefícios que tocar piano lhe propiciava. Chegava sempre mais cedo às aulas, dizia que quando tinhas aulas dormia melhor à noite, percebia transformações benéficas, mas não saberia verbalizá-las. Quando conversado sobre a proposta da presente pesquisa, mostrou- se bastante interessada, dizia que saia mais animada após as aulas, que se sentia melhor, que era muito bom o contato com o piano e com o som desse instrumento musical.

No inicio do ano, 2009, fiz contato por telefone, porém fui informada que Juliana não estava morando mais com a família. Curiosa, na aula seguinte, perguntei sobre tal fato. Ela responde que sempre passava em frente a um convento e que se interessou em conhecer o local. Viu que as pessoas são muito estudiosas, inteligentes, cultas e optou por morar um ano no convento para ver se desperta nela o interesse pela carreira religiosa. Atualmente, trabalha em dias alternados, vem às aulas semanalmente e realiza atividades diárias do convento, onde está morando.

Quando pergunto sobre seu desejo futuro, diz que está gostando do convento, que no início as pessoas pareciam rígidas, mas que na verdade tinham suas regras e normas que deveriam ser seguidas. Hoje as vêem como receptivas, são pessoas que a aceitam como ela é. Entretanto, demonstra conflito em relação à escolha futura, relatando que sua mãe é bastante rígida e contrária à vida religiosa, o que a coloca em conflito com a possibilidade de se tornar freira.

Como já explicitado anteriormente, a entrevista foi realizada antes do início da aula e das atividades de desenho. Juliana se mostrou bastante comovida diante da possibilidade de falar sobre si mesma, chorou por diversas vezes, falava baixo, pouco, respondia com falas curtas às perguntas feitas. Na parte inicial, referente a

falar um pouco de si, suas respostas, no geral, finalizavam com “é isso”, e fez uso algumas vezes da 3ª pessoa do singular, “você”, ao falar sobre si. Suas falas mais longas nesta parte são sobre o que a marcou na infância, seu desenvolvimento profissional e quando fala da música e da relação com o piano.

No que se refere à realização dos desenhos, Juliana fala pouco sobre suas produções, geralmente com temas bastante concretos, diretamente relacionados à sua vida atual. Não desenvolve as histórias dos desenhos, com respostas curtas e pontuais. Os títulos são bastante objetivos e diretos. Após a terceira série de desenhos, começa a incluir palavras junto às imagens e pequenas histórias escritas.

2 Entrevista

Como foi colocado no Capitulo de Método, os elementos da entrevista foram divididos em categorias:

1ª categoria: História de vida

Juliana tem dificuldade para falar de si mesma, de se relacionar socialmente e mostra-se com a auto-estima bastante baixa.

“(sobre ela) Ah… como eu me vejo, é tão difícil essa pergunta. Ah, sei lá, eu acho que eu sou um pouco muito para baixo, assim, não muita auto-estima, é isso”.

Sente-se mal em contar sobre sua vida, sente-se oprimida, não percebe qualidades em si, sente-se muitas vezes incompetente e são poucos os dias que se sente bem.

“(sobre o que gosta) Ah… eu acho que as vezes eu não gosto de nada. (ri). (…) A, tem dias que a gente acorda e… ah… ta bom… não é freqüente, mas as vezes é bom, né. Depois passa. (…) (Silêncio). Hum… eu me sinto (quando está bom) mais, sei lá, mais humana. (…) Ah… quando a gente acha que está tudo ruim é porque alguma coisa não dá certo, né, e aí se não dá certo, a gente acha que é incompetente, burra, e depois, você vê que… acontece! E é sempre? Não. (chora). O que você sente? Estou me sentindo muito mal em contar da minha vida”.

È evasiva nas respostas. Aparenta ter dificuldades em discriminar o que foi bom ou não para ela. Conviveu pouco com familiares paternos e maternos. Estes vivem no interior de São Paulo e no Estado da Bahia, o que faz com que Juliana tenha pouco contato com primos, tios, avós, tendo, apenas, o convício com sua família de origem, pai, mãe e irmã. Seu pai faleceu há cinco anos, sua mãe e uma irmã mais velha moram juntas, e ela, há seis meses saiu da casa dos pais para conhecer a vida religiosa em um convento. No início, não conhecia as pessoas, achava-as bastante reservada, foi impactante. Hoje acredita que teve um pouco de paciência e agora respeitam o seu jeito. Não sabe definir, ao certo, o seu jeito, acha que as pessoas a olham e pensam que é retardada.

“(sobre seu jeito) É assim. Sei lá, não sei definir. Eu não… Acho que as pessoas olham para a minha cara e acham que eu sou retardada. Não sei porque … (chora, silencio 30 segundos)”

Seus pais eram bastante rigorosos, principalmente o pai, que proibia as filhas de saírem de casa e restringia os relacionamentos somente ao convívio escolar. Suas experiências de vida foram bastante restritas, e percebe que as proibições não tinham relação com a realidade.

“(infância) não sei se isso é normal, mas… meus pais foram muito rigorosos, meu pai principalmente, então eu não podia sair, brincar na rua, então não tinha muito… não saia muito com eles, nem com ninguém, ficava mais em casa, então… brincadeiras em casa, só eu e a minha irmã, e é isso, que me lembro é isso.(…) tinham coisas que

eu achava que não tinha muito a ver assim, e eles proibiam. (…) Nem ir pra casa fazer trabalho de escola eu não podia”.

Na escola não tinha amigos, considerava-se tímida, ela concluiu o ensino médio, técnico em química e nutrição, fez estágios na área e começou a trabalhar com quinze anos. Em seu primeiro emprego cobriu férias durante um ano em uma empresa. Não tinha relacionamentos sociais, sempre trabalhou sozinha. Atualmente é recepcionista em um serviço de saúde, vê aspectos bons e ruins. Considera bom observar a atitude das pessoas que buscam o serviço, não gosta da jornada de doze horas seguidas, da chefia rigorosa. Aparenta passividade em relação ao que considera ruim, conforma-se com a rigidez.

Em síntese, as vivências de Juliana são marcadas pela ausência de convívio social. Cresceu distante de familiares e teve como companhia somente a irmã. Na infância se relacionava pouco, considerava-se tímida e os pais não incentivavam a relação com outras crianças e espaços de interação. Na vida adulta continua desempenhando trabalhos sem uma convivência social. Juliana tem dificuldade em se aproximar de pessoas e de estabelecer relações sociais, e também de se expressar. Sua auto-imagem é predominantemente marcada pela desvalorização de si mesma e passividade diante das dificuldades. Teve uma educação bastante repressiva, tem uma auto-imagem e auto-valor baixos.

2ª categoria: relação com a música

Juliana refere que teve pouco contato com música, o pai a proibia de assistir televisão, não se lembra de cantigas infantis. O primeiro contato que teve com a música, e que a marcou, foi na Igreja Católica, aos doze anos, quando começou a fazer catequese, onde ouvia um coral que sempre cantava. Sentia vontade de participar do coral, mas achava que eles treinavam muito e não teria tempo para acompanhar os ensaios. Achava que as pessoas que tocavam e cantavam no coral

eram diferentes, eram mais receptivos. Sentia que a música na igreja provocava nela a sensação de liberdade.

“Eu participo muito da igreja, assim, católica, eu participava. E na igreja sempre tem música, né. Aí eu falei, essas pessoas parecem que elas estão felizes, que melhoram (…) tem o coral deles lá, e aí eles tocavam bastante, tinha órgão, teclado, essas coisas e violão, e são pessoas completamente diferentes, são pessoas diferentes, tratam todos diferente, são mais felizes, mais alegres, mais abertas, acho que se eu aprendesse talvez eu pudesse ser igual (…) tinha uns doze anos. Liberdade (sentimento que a música provocava)”.

Através do coral ela começou a associar música com felicidade, alegria. Outra vivência que se lembra foi também na Igreja, em uma missa de Natal, quando pode ver-se reunida com os parentes distantes. Considera que foi bom, porque sentia que naquele momento, todos ouvindo a música, eram iguais. Teve a sensação de igualdade e respeito.

“Acho que foi em uma missa de natal. (…) É que estava toda minha família unida. Meus pais são assim, de família muito longe, tem pouca gente aqui. (…) E eles foram também e sei lá, acho que estar junto, assim, nossa… aquela reunião… ali… (…) (chora) Não consigo definir. Naquele momento ninguém era melhor ou pior que ninguém, era só… estar com todo mundo ali, reunido, ouvindo a música, todo mundo foi igual. (Sobre a sensação) de igualdade, de respeito.”

A igreja parece estar relacionada em sua vida e ao seu passado como momentos importantes de felicidade e convivência. É percebido como um local que possibilita vivências de união, respeito e igualdade, das quais emergem experiências distintas daquelas vividas no ambiente familiar, restritivo e opressor.

Atualmente, considera que tem pouco contato com a música, diz que basicamente vivencia a música nas aulas de piano, no estudo do instrumento no convento onde está morando e através das músicas que são tocadas lá. Onde está não pode ouvir música livremente.

Em síntese, Juliana não tem recordações de cantigas ou musicais durante a infância. Percebe a rigidez dos pais como uma experiência que a afastou dos meios de comunicação, como a televisão e o rádio. A primeira experiência musical marcante aconteceu na Igreja, quando começou a freqüentar a catequese, admirando a atitude das pessoas do coral da igreja, considerando-as felizes, abertas e alegres. Quando os ouvia tocando, sentia-se livre. Outra lembrança foi em uma missa de Natal, que relata como uma experiência de reunião, aceitação, igualdade e respeito. Essa sua experiência na igreja pode estar relacionado a sua entrada no convento atualmente, como uma busca de um espaço mais acolhedor e protetor.

3ª categoria: Relação com o piano

Após seu contato com a música na Igreja, Juliana, já na adolescência, fez dois anos de aulas de violão com o padrinho, que tocava como amador. Não gostava muito, mas queria aprender música porque se recordava do seu contato com o coral da Igreja, quando tinha doze anos, na catequese.

“porque você procurou aulas de piano? Porque eu não … assim… sempre… na minha …. família… o meu padrinho ele toca, meio amador, vamos dizer assim, ele toca violão, e aí eu aprendi um pouco com ele, só que eu não gostava muito. Fiz acho que uns dois anos com ele. E eu… eu participo muito da igreja, assim, católica, eu participava. E na igreja sempre tem musica, né. Aí eu falei, essas pessoas parecem que elas estão felizes, que melhoram… (fala em tom bem baixo)”

Juliana busca a música na tentativa de resgatar as sensações vividas anteriormente com o coral da igreja. Anos depois, tenta aprender violão com o padrinho, porém, provavelmente, não se sente correspondida em sua busca. Percebe as pessoas que cantam e tocam na igreja como sendo felizes e acredita que a música pode possibilitar algum tipo de melhora.

Sente-se oprimida, não admira nada nela mesma, não tem qualidades. A própria expressão verbal sugere pouca fluência na maneira de se expressar, com falas cortadas e baixas. O que a realiza e faz bem a ela é ir às aulas de piano. Não sabe ao certo, sente uma coisa boa, percebe que ninguém a perturba. O piano possibilita uma experiência diferente, acha que é pelo tempo, porque cada pessoa tem um estilo e ela pode, então, ser ela mesma, sente-se mais aceita. No contato com o instrumento ela pode perceber também sua capacidade de evoluir em uma determinada situação.

“(sente-se) muito oprimida (fala em tom bem baixo) (…) (silencio 20 segundos, chora) (sobre suas qualidades ou coisas que admira, gosta) não tenho. Algo que te realiza, que te faz bem? Quando eu venho aqui. (…) Ah, sei lá, é assim… você sente uma coisa que é boa, não tem ninguém te perturbando, (…) se você não atinge um objetivo que todo mundo consegue atingir, eles te detonam, e aqui é diferente… Pelo tempo, né, cada… um há um… porque cada pessoa tem um estilo, né, então aqui você pode ser você. Com o piano. (…) É, você se sente mais aceita. (…) Ai… acho que é a capacidade, né, de evoluir. Que todo mundo é capaz de evoluir em uma situação, e é isso. (chora).”

Juliana acreditava que se aprendesse música poderia ser mais alegre, mais aberta, poderia se assemelhar às pessoas do coral da Igreja. Após um ano e meio de aulas de piano, percebe que mudou, aprendeu a ser mais tolerante com ela mesma, menos exigente consigo.

“Ajuda (o piano ajuda a ser mais alegre). Percebi muita mudança. Aprendi a ser mais tolerante comigo mesma, não exigir tanto do que eu não tenho pra poder mostrar, é isso. (chora muito)”

Acha que não tem nada para mostrar, parece que a repressão vivida na infância a impede de ver-se e de expressar algo seu. Por outro lado, é auto- exigente, cobra-se muito, desejando mostrar algo para além de suas possibilidades, o que a coloca em um profundo conflito consigo. No entanto, mostra uma

ambivalência e um conflito, como se fosse muito difícil para ela aceitar que pode mudar, ser mais alegre e ser mais “ela mesma”.

Após o início das aulas de piano, percebeu também que se sente mais renovada, relata a experiência de tocar o piano como uma sensação de viver uma transformação que vem de dentro, como se saísse de um buraco, como se estivesse renascendo.

“(sobre as aulas de piano) Eu me sinto mais renovada, parece que é por dentro, acho que eu renasço, parece que eu estou dentro de um buraco e aí sai”.

Não conhecia pessoalmente um piano antes das aulas, a escolha pelo aprendizado desse instrumento foi por influência do seu som. Acha que o som do piano traz mais vida, sente que nele pode articular a mão e o coração. Pensa também que é porque nele é possível colocar um ritmo próprio e usar as duas mãos em um mesmo movimento. O piano parece oferecer um canal para colocar no mundo seus sentimentos, sua expressividade, como uma possibilidade de renascimento.

“Eu acho que o som dele (do piano) é diferente, traz mais vida, você pode articular a mão e o coração. (…) Ah, você pode sentir você, pode sentir dentro de você. (…) Nunca tinha visto (o piano), só o som mesmo. (sobre a escolha do piano) Talvez por você conseguir também… outras… poder… por o ritmo que você quiser, você poder colocar ritmo, usar as duas mãos com o mesmo movimento’.

Quando toca piano sente-se livre de tudo que a deixava mal, tem uma sensação de liberdade, de aceitação e de expressão de suas capacidades. Sente-se como se estivesse morta e de repente vivesse, considera que quando toca se percebe com vida. O que faz bem para ela é a possibilidade de sentir a si mesma de forma espontânea e natural através do contato com o piano. Pode, então, articular a mão ao coração, o externo ao interno, por meio do som e do piano.

“Eu me sinto livre de tudo que me deixava mal, me dá sensação de liberdade, de aceitação também. (…) (chora) de capacidade mesmo, né… (silêncio 30 segundos) é como se você estivesse morto e depois você vivesse assim, te dá vida. (…) Ai, é sem cobrança, poder sentir alguma coisa, sentir essa vivência, que você não faz tudo por impulso, porque tem que fazer é porque faz parte, então é isso. Esse contato, sentir, me faz bem”.

Durante a entrevista ela começa a chorar. Dessa forma, Juliana parece pode expressar toda a dor que está em sua alma. Os momentos de silêncio são grandes e surgem como possibilidade de sentir e de expressar os seus sentimentos a partir do momento que pode falar de si e da sua relação com o piano.

A espontaneidade, o respeito a si mesmo, o reconhecimento dos seus próprios limites, a tolerância aos erros e a possibilidade de ver-se capaz são algumas das mudanças que Juliana comenta ter percebido nela mesma antes e depois das aulas de piano. Quando se aproxima o dia da aula ou quando está ensaiando no piano do convento, percebe que se sente bem, percebe em si a possibilidade de ver-se espontânea. Após o contato com o instrumento, vê-se mais tolerante, reconhecendo que faz parte de toda pessoa ter momentos de dificuldades, momentos bons e ruins.

“Quando está chegando o dia da aula eu me sinto bem, quando eu estou estudando lá também eu me sinto bem. Não é mecânico. É espontâneo. (…) (silêncio 25 segundos) eu me tolero mais… (silencio

15) é respeitar mesmo os meus próprios limites, saber que todo mundo tem dificuldades, tem momentos piores e melhores, porque todo mundo pode desenvolver tudo, que nem se você trabalhar alguma coisa, você vai ficar cada vez melhor, mas você descobre que não dá pra saber tudo, de uma vez só, tem… descobre que você tem habilidade em alguma coisa”.

Após as aulas, percebe-se com mais esperança em si mesma, sente que seus comportamentos também se transformam e ela se permite ouvir mais e esperar mais. Antes da sua experiência com o piano, sentia-se muito incompetente. Não

acredita que esse sentimento passou totalmente, mas hoje, ela acredita um pouco mais em si mesma e espera que as pessoas também acreditem.

No que se refere à experiência com o piano e a sua vida, de maneira geral, Juliana também percebe mudanças no relacionamento com as pessoas. Antes ela não participava de grupos e não conversava com as pessoas, hoje percebe que está mais participativa e acredita que o piano a ajudou também no relacionamento social.

“antes eu não falava com muita gente, não entrava muito em grupos, pra falar comigo. Hoje não, hoje eu já participo mais. Você acha que o piano te ajudou na relação com as pessoas? Sim”.

Um pouco tímida, porém de maneira espontânea, Juliana se arrisca a dizer o que acha em relação ao seu contato com o piano e sua transformação nos contatos sociais. De modo quase poético, ela relaciona sua experiência com as notas e, os movimentos musicais, com os relacionamentos interpessoais. Assim como as notas tem um som e um movimento específico, também terá dias que ela será mais introspectiva, mas tal introspecção não pode influenciar a totalidade, é preciso dar espaço também para o contato com as pessoas, acredita que as relações interpessoais são necessárias. Assim como cada um tem um som, a vida também oferece sons diferentes, bons ou ruins, e considera importante ter o preparo para saber lidar, a estrutura para aceitar, o que a vida oferecer:

“a maneira como cada nota tem um som, cada momento, a gente responde de uma maneira, né, vai ter dias que você vai estar se sentindo mais introspectivo, e que entre as pessoas isso não pode fazer tanta parte, tem que ter tempo, você tem que dar espaço para o outro lado também, as pessoas precisa da gente assim como a gente precisa delas, não ser muito sozinha. Tem as dificuldades para fazer isso ou não. Cada um tem um som e na vida também é assim, todo dia na vida tem um som diferente para você, tanto bom quanto ruim, é mais o preparo para saber, para ter uma estrutura para saber aceitar o que vier”.

Para Juliana, a experiência com o piano a fez perceber que é possível ter estrutura para aceitar o que a vida oferece. Ela concebe essa estrutura, como a possibilidade de estar no meio de tudo o que está acontecendo e se manter firme, independentemente se a sua vivência é percebida como boa ou ruim. Acredita que é possível elaborar um sentido de todas as experiências e hoje percebe que tais vivências passam. Acredita que o piano favoreceu muito nesse sentido, e, com certa dificuldade, arrisca a dizer que tal compreensão deve ter relação com o tempo. Novamente, esboça os sentidos que a musica foi configurando nos sentidos que dá para os acontecimentos. Assim como cada nota tem seu tempo, cada música tem seu ritmo, seu espaço e mudam conforme a melodia, as pessoas também têm o delas. O respeito, então, torna-se fundamental, respeitar a si mesma, assim como ela respeita a música.

“Tudo tem um tempo você encontra um tempo seu, o tempo, cada nota tem um tempo, cada música tem seu ritmo, seu espaço, seu tempo, eles mudam de acordo com a melodia, com o ritmo, assim como o ritmo a gente também tem o nosso, assim a gente respeita, a gente também tem que respeitar também, o respeito… respeitar a mim, como eu respeito a música”.

Caminhando para o encerramento, Juliana comenta sobre suas expectativas futuras. Espera conseguir se realizar, encontrar o que gosta. Talvez se realize como freira. Faz uma relação entre suas experiências a partir da música e a sua atual escolha de conhecer a vida religiosa. Acredita que foi em uma igreja que iniciou o contato com a música, que ela ouviu, então acha que para dar continuidade a esse sentimento, tem que estar no meio, tem que se doar. Lá ela também encontrou o piano, quando toca no convento sente que é bom, gosta, percebe que é como se estivesse na aula.

Em síntese, ao falar sobre sua experiência com o piano, Juliana se mostra bastante envolvida pelas transformações que vem percebendo em sua vida no decorrer do contato com o piano. Expressa-se de maneira singular, com palavras que tentam exprimir a possibilidade de entrar em contato com seus sentimentos, com sua alma, na tentativa de demonstrá-los de modo quase poético. Articula os sentidos abstraídos a partir das variações sonoras de cada nota, do ritmo de cada

música, do movimento, da expressão corpórea e do tempo, estabelecendo-os em relação com uma nova percepção de si no (e do) mundo.

3 Desenhos

Como descrito anteriormente, no Capítulo IV, Método, foi solicitado à participante a execução de desenhos espontâneos em dois momentos: o primeiro, logo que ela chegava, anterior à aula. Já o segundo desenho era solicitado após uma hora de aula prática no piano.

Foram registradas para a presente pesquisa quatro aulas semanais, totalizando quatro desenhos espontâneos realizados antes das aulas e seis desenhos após as aulas. No penúltimo dia a participante opta por realizar uma seqüencia de três desenhos seguidos após a aula, referindo estar insatisfeita com suas produções e na tentativa de se expressar melhor. Segue abaixo a análise dos desenhos, de acordo com o referencial de Furth (2004).

3.1 Primeira aula

3.1.1 Antes de tocar piano (ANEXO 2):

Pontos focais e interpretação: A observação atenta do desenho provoca a impressão de movimento, porém com certa contradição ou ambivalência, pois apresenta as figuras não estáticas, porém há dúvidas com relação à direção do movimento, se é para a direita ou para a esquerda.

A maioria das pessoas não possui a face desenhada. Todas as figuras humanas, no total doze, não possuem mãos, orelhas, pés, uma tem boca e olhos e a outra possui olhos e nariz, estas localizadas no quadrante esquerdo-inferior. A ausência de olhos, boca, nariz, pode indicar a falta de identidade e a omissão das mãos, uma dificuldade de contato com o meio social, indiferenciação e isolamento. As duas pessoas com esboços de faces podem indicar uma diferenciação, ainda inconsciente (quadrante esquerdo-inferior).

Os veículos de locomoção não encostam o chão, existe inicialmente um semáforo, depois faixas de pedestre entre os veículos de locomoção. O trem do metrô não está sob trilhos, ônibus e metrô não possuem portas e janelas. Há um esboço de movimento, porém faltam estruturas, base, para que isso possa ocorrer. Entretanto, existem faixas de pedestre, semáforo, podendo sugerir segurança para atravessar o caminho e um início de organização.

O desenho ocupa toda a parte inferior do papel. O metrô está na parte central, o que pode ser compreendido como o meio de locomoção que transita entre a superfície e o subterrâneo, o metro fica na maior parte do tempo embaixo da terra, sugerindo uma possibilidade de caminho ao inconsciente. Em específico, a rua, o semáforo e o ônibus estão no quadrante direito-inferior, indicando o potencial futuro; o metrô está no centro-inferior, possivelmente indicando o movimento de descida para o inconsciente e desconhecido; no esquerdo-inferior estão duas pessoas com faces, como uma possível diferenciação, ainda que inconsciente e o prédio e a árvore, como símbolos vitais (árvore) e de transformação, (o prédio é o local onde está o piano), indicando potenciais inconscientes.

As figuras desenhadas não possuem uma proporção igual, sendo que a árvore e o prédio são pequenos em relação às pessoas, bem como os meios de locomoção são menores proporcionalmente. Existem recursos inconscientes, porém ainda usados de maneira indiferenciada, da mesma maneira que acontece com as pessoas e o tamanho delas em relação às demais figuras.

A maioria das pessoas está encapsulada (quatro no ônibus e cinco no metrô) dentro dos meios de locomoção, tendo apenas três ao ar livre, e dessas, duas estão juntas. O encapsulação significa necessidade de desenhar limites específicos ao

redor de si mesmo, dentro de algo protetor. A indiferenciação (pessoas sem face) tem um potencial de movimento (meios de locomoção), porém ainda limitados (encapsulação).

O traço do metrô é sublinhado, sugerindo falta de sustentação. Já os meios de locomoção apresentam transparência, sugerindo uma possível infantilidade ou problema de orientação da realidade.

Segundo Juliana, o movimento é da direita para a esquerda, o ônibus e trem são preenchidos com as cores verde e cinza, sugerindo a movimentação do agora, consciente, para o desconhecido, inconsciente.

Inquérito: Juliana relata que se desenhou indo para a aula de piano, descreve muito concretamente sua história da direita para a esquerda, dizendo que quando sai do convento tem um semáforo, depois ela pega um ônibus, desce, entra no metrô, sai, tem pessoas nas ruas, desce até minha casa e chega até meu prédio, que tem uma árvore. Não tem sol, o tempo está cinza e não tem um título para a história.

A hipótese levantada aqui é que as aulas de piano aparecem como uma possibilidade de encontro com algo muito significativo para ela, embora ainda muito inconsciente.

3.1.2 Depois de tocar piano (ANEXO 3):

Pontos focais e interpretação: O sentimento mobilizado pelo desenho é de liberdade, alegria, segurança. É mais vivo e expressivo e há presença de estruturas construídas. Não possui pontos estranhos nem obstáculos.

Tem uma casa, com cores vermelha (paredes), podendo sinalizar uma questão de importância vital (vermelho) emoções arrebatadoras, expressões mais vivas. Há aberturas como porta e janela, indicando uma comunicação entre interno e externo, ainda que esteja posicionado predominantemente na parte inferior- esquerda, onde está a casa, árvore e flor, sugerindo a expressão de potencialidades

vitais e protetoras ainda inconscientes. A porta não tem fechadura, indicando ausência de controle nas suas interações sociais. O telhado mostra já a existência de um espaço para a fantasia, embora o marrom possa sinalizar certo encobrimento desta. A flor é o objeto maior proporcionalmente, está pintada de rosa nas pétalas e amarelo ao centro, dando ênfase para um potencial inconsciente que sugere para a resolução de um problema (rosa) e ênfase em coisas de natureza espiritual ou intuitiva, (amarelo no centro), algo de grande valor. Na parte inferior-direita há uma estrada, com movimento ascendente para cima, pintada de marrom claro, que pode indicar um caminho para superar as forças destrutivas e retornar a um estado saudável e potencial futuro que apontam para o “aqui-agora” (volta-se para o quadrante superior direito). Nela, há um pequeno carro que segue nesta direção. No lado superior esquerdo, há o sol, pintado de amarelo, podendo significar a energia que dá a vida ou uma situação precária de vida. Os sublinhados estão presentes no chão da flor e no automóvel, indicando talvez fragilidade e ansiedade na relação com o mundo externo.

A casa é pequena com relação ao tamanho da folha e isso pode estar relacionado a um sentimento de “pequenez” do ego. Os traços são mais firmes, sugerindo maior estruturação.

Inquérito: Juliana fala pouco, diz que é o caminho da minha casa e um carrinho indo embora.

3.2 Segunda aula:

Neste dia, o primeiro desenho foi realizado depois da entrevista semi- estruturada e antes da aula de piano. Já o segundo, após a aula.

3.2.1 Antes de tocar piano (ANEXO 4):

Pontos focais e interpretação: O sentimento que provoca o desenho é de tristeza, sofrimento, medo, angústia, abandono, solidão.

Desenha uma figura humana e de duas claves musicais, de sol e de fá, encapsuladas, totalmente localizado na parte inferior-esquerda, sugerindo imersão no desconhecido, inconsciente.

Na figura humana, os olhos são estranhos, tortos, sem pupila, “não enxergam”, como se fosse difícil olhar, “ver”. A ausência das mãos pode indicar dificuldade de contato social, os olhos tortos e sem pupilas dificultam o contato com a realidade. Na face existem lágrimas que indicam a tristeza, mas também a possibilidade da expressão de conflitos. Tem um esboço de orelha, que sugere uma primitiva adaptação ao meio externo. Existem dois botões na blusa, sinalizando proteção, fechamento. Os traços são fracos, indicando fragilidade egóica. A figura é pequena e não tem contato com o chão, sem bases e estrutura.

Fez o uso do verso da folha, inicialmente, esboçando um vulto humano com cabeça delimitada e corpo indefinido, talvez uma tentativa de desenhar uma pessoa, indicando um possível conflito na constituição da personalidade, do eu. O vulto humano no verso está rasurado, podendo reforçar a sugestão de material conflituoso ou uma área em que a representação simbólica está ganhando nova significação, no caso, a figura da pessoa. O queixo e a boca estão sublinhados, indicando a necessidade de complementação, em específico, uma possível necessidade de sustentação (queixo) à comunicação (boca).

Estão encapsuladas duas claves musicais, fundamentais para o piano, a clave de sol e a clave de fá. Clave significa chave, podendo sugerir a chave para os potenciais do inconsciente, sinalizando também a necessidade de desenhar limites específicos ao redor destas chaves, ainda aprisionadas. Essas duas claves no piano também sinalizam a possibilidade de expressão e integração dos sons graves (tocados nas notas sob a clave de fá) e agudos (situados na clave de sol), mas ainda com certo medo ou repressão diante dessas possibilidades.

Inquérito: Não fala muito, diz que é ela e é como está se sentindo, “triste”. Não tem título e não desenvolve uma história.

3.2.2 Depois de tocar piano (ANEXO 5):

Pontos focais e interpretação: O sentimento provocado pelo desenho é de serenidade, leveza, placidez, tranqüilidade.

Os olhos receberam óculos, que no caso dela, que possui alto grau de miopia, podem representar a possibilidade de enxergar melhor a si mesma e ao mundo, talvez uma possibilidade de perceber melhor, ter um olhar mais definido para si mesmo, poder ver, tomar consciência do que vê. Faltam mãos e orelhas, apontando para a dificuldade de expressão e contato social. A boca está encurvada para cima, indicando bem estar.

Está posicionado no canto inferior-esquerdo, porém com um breve deslocamento (em relação ao anterior) para a direita. Não existem botões na camisa, sinalizando maior abertura na região do tórax, onde se pode dizer que é o local dos sentimentos.

O traçado é um pouco mais firme, sinalizando para mais segurança e força aumentadas após a aula. Embora ainda pequeno, é maior que o anterior. O chão está sublinhado, indicando a necessidade de maior sustentação. Não há relação com o todo e com o mundo à volta e ainda não há contato com a realidade, o desenho não está firmado em um chão.

Há a presença da palavra “A Serenidade”, sinalizando que Juliana teme não ter transmitido de maneira clara a mensagem ou o argumento do desenho. As palavras, neste caso, ajudam a dar a definição mais clara do que quer dizer, reduzindo as chances de que a expressão seja mal interpretada.

Inquérito: Juliana relata que desenho ela, como estava se sentindo naquele momento. Escolhe escrever o título no desenho, chamando-o de “A Serenidade”.

3.3 Terceira aula:

3.3.1 Antes de tocar piano (ANEXO 6):

Pontos focais e interpretação: O desenho provoca sentimentos de solidão, estranheza, instabilidade.

Fez o desenho da figura humana, novamente localizado na parte inferior- esquerda, ligado ao desconhecido, inconsciente. O traçado continua fraco, indicando insegurança e fraqueza.

Os braços e chão apresentam estranheza. O chão é desenhado com várias linhas inconstantes, sinalizando uma estrutura instável. Os braços são pouco desenvolvidos, apontando uma dificuldade de adaptação social, dificuldade em realizar potenciais e fantasias. Não possui pescoço, havendo falta de conexão entre cabeça e corpo, razão e emoção. Há a tentativa de desenhar ombros, porém incertos. No tórax existem dois botões, apontando para pouca abertura ao externo.

Os braços, as mãos e as pernas estão sublinhados, apontando para necessidade de complementação e fortalecimento tanto na relação com o mundo externo, quanto na realização de potencialidades. Também mostra falta de apoio na realidade concreta.

O título do desenho “A Solidão”, mostra seu sentimento de isolamento em relação às pessoas e ao mundo, como um modo de existir no mundo.

O movimento é para a esquerda, apontando para a direção do inconsciente e caminhando para o desconhecido, obscuro.

Inquérito: Fala pouco, diz que é ela e é como está se sentindo. Escreve o título no desenho: “A Solidão”.

3.3.2 Depois de tocar piano (ANEXO 7):

Pontos focais e interpretação: O desenho provoca sentimentos de paz, tranqüilidade, serenidade, alegria, confiança, mais cuidado consigo.

Fez o desenho de uma figura humana, com a presença de uma casa à esquerda e de um automóvel à direita. De modo geral, está localizado na parte inferior-esquerda, bem próximo ao centro.

A casa está na parte inferior-esquerda, a figura humana também, porém mais à direita. Pode sugerir a existência de um espaço próprio, a casa, com paredes vermelhas, podendo sinalizar uma questão de importância vital ligada às emoções; o telhado foi pintado de marrom, que pode denotar uma luta para superar forças destrutivas e a existência de um espaço para as fantasias. A porta está centralizada, com uma separação das paredes pintadas de vermelho. Esta parte, tanto paredes quanto a porta não foram pintadas. Já a figura humana, é central, está pintada, há presença de cabelos pintados com grafite e com um rosado/cor-de-pele, sinalizando para a presença de vida na figura humana. Há presença de óculos, pintados com a mesma cor, sugerindo uma tentativa de correção da visão do mundo, os olhos estão bem definidos, pintados de azul-claro, sugerindo um olhar contemplativo, distante. O nariz e a boca também estão bem definidos, e a boca recebe a cor vermelha. Esse desenho mostra uma evolução na constituição e expressão de sua identidade, sinalizando o auto-cuidado e a expressão de sentimentos vitais. Há pescoço, indicando uma conexão entre cabeça e corpo, razão e emoção. A blusa foi pintada de verde-escuro, sugerindo crescimento ou inovação da vida, como um processo de cura na região do tórax, local do coração, símbolo dos sentimentos, ainda que com a presença de dois botões, indicando alguma resistência. As calças também são bem definidas e pintadas com azul escuro, também podendo denotar saúde, fluxo vital da vida ou energia. As pernas e pés são presentes e os sapatos cuidadosamente recebem duas cores, uma azul claro, na parte do tornozelo, apontando certo distanciamento, uma contemplação; na ponta há a presença do rosa, cor de pele. Já o automóvel está centrado na parte inferior direita, no espaço do aqui-agora, com movimento para à direita, presença de fumaça na parte traseira e janela na parte

dianteira, sinalizando para uma abertura e deslocamento da energia. Possui rodas, porém estas não encostam o chão. Novamente faz uso da cor marrom-claro podendo denotar a tentativa ou luta para retornar a um estado saudável. O traçado fraco, porém um pouco mais firme que o anterior, e a figura humana está encravada nas linhas do chão, sinalizando maior firmeza e sustentação.

A possibilidade de relação com o mundo externo é demonstrada pela presença da casa, como uma expressão do ego, e do automóvel, como uma possibilidade de movimento, trazendo para o desenho elementos externos à figura humana.

Há pequenos sublinhados na porta da casa, na perna no pescoço e face e também no chão, que mostram ansiedade com relação ao significado das partes do corpo e da casa, sendo difícil lidar com as sustentações (pernas) e conexões (pescoço, porta) e sua identidade (face).

Usa para palavras no título, escrito no desenho: “Indo p/ casa”, tentando transmitir de forma clara a mensagem expressa enfatizando a possibilidade de “ir para casa”, de possuir um espaço próprio dela e entrar nele.

Ainda mostra ambivalência. A figura humana está com a ponta dos pés voltada para o lado esquerdo, mais para o inconsciente, apontando para o desconhecido, obscuro e, entretanto, o veículo aponta para a direita, com a presença de janela à frente e fumaça sinalizando a parte traseira do automóvel. Isso mostra talvez um conflito entre o caminho da consciência, do crescimento e a regressão e fechamento em si mesma.

Faz uso da cores, vermelho, azul escuro, azul claro, morrom claro, verde e rosa, sugerindo, de modo geral, a expressão das emoções.

Inquérito: Juliana fala apenas que é ela indo para a casa e que no desenho tem ela, uma casa e um carro.

3.4 Quarta aula:

3.4.1 Antes de tocar piano (ANEXO 8):

Pontos focais e interpretação: O desenho provoca sentimentos vitalidade, movimento.

Existem três figuras humanas na produção, duas juntas, com presença de braços, cabelo, boca, olhos e nariz, no formato palito. Isso pode sinalizar para uma indiferenciação e infantilidade. Entretanto, há uma terceira, abaixo, próximo a um prédio, com maior diferenciação, com calças, blusa, cabelos e óculos, boca e nariz, sinalizando a possibilidade de diferenciação do eu, ainda que inconsciente. As mãos estão omitidas, apontando para a dificuldade de contato social.

Esta terceira figura está próxima a um prédio, onde há um caminho, com um movimento superior para inferior, representando um movimento do consciente para o inconsciente. À direita desse caminho há uma árvore, e uma flor proporcionalmente maior que os demais elementos apresentados, sinalizando um deslocamento destes elementos para à direita, quando comparados com a árvore e a flor do primeiro desenho. Ainda que localizados no quadrante esquerdo-inferior, isso pode sugerir uma aproximação dessas potencialidades vitais (árvore e flor) no nível da consciência.

O prédio apresenta certa estrutura, tem seis andares, mas não possui entrada, porta, apenas janelas. Estes são recursos de comunicação com o meio externo, sendo que a porta é o principal e as janelas são recursos secundários. Pode sinalizar a possibilidade de uma estrutura interna, pois é um prédio, estruturado, mas ainda fechado para o mundo. Na medida em que o prédio é o espaço onde acontecem as aulas de piano e é o que aparece mais estruturado, ainda que no canto esquerdo, pode-se pensar que ela expressa, ainda que de forma inconsciente, uma possibilidade de estruturação através da expressão do si mesmo por meio da música e do piano.

O topo do prédio está sublinhado e outras partes da parede também, apontando para necessidade de complementação, apoio e fortalecimento egóicos, certa ansiedade na formação de apoios e delineamentos, como o teto, que representa a parte superior, o lugar de fantasias.

Faz uso de palavras no desenho para se expressar, dessa vez, descreve uma história, que ocupa o lugar central no papel:

“Hoje 13:00 h sai de casa, para ir a aula de música. Peguei o ônibus e metrô, cheguei na _aula_ +- 14:10 h.”

A presença de palavras no desenho define o que ela está tentando transmitir de forma clara. Neste caso, ela descreve um caminho percorrido. Oferece noções de tempo (13h – 14:10h), de locomoção (ônibus e metrô), de movimento (casa-aula) e outros elementos encontrados nesse caminho, como árvore, flor e pessoas, e a chegada ao prédio. Sendo um desenho realizado antes da aula, pode-se pensar que há um caminho percorrido do nível consciente, para o inconsciente, que segue um tempo interno próprio, que está em movimento, em cujo percurso é possível encontrar recursos vitais e potencialidades (árvore, flor e pessoas). Chegar ao prédio significa chegar ao local da aula de piano, um espaço de transformação e contato com o si mesmo.

A flor, que pode ser compreendida como um princípio receptivo é proporcionalmente maior do que os demais elementos, e o que está mais posicionado à direita do desenho, indicando destaque para este elemento. A árvore é proporcional, com a copa bem estruturada e o tronco apresentando alguns sinais de preenchimento; entretanto, no meio, há uma marca, podendo sinalizar traumas ou rupturas na formação da identidade.

O movimento novamente é para a esquerda e para baixo, sendo possível levantar a hipótese de que as aulas de piano podem mobilizar o contato com as emoções e com possibilidades inconscientes.

Inquérito: Quando solicitado para falar algo em relação ao seu desenho, Juliana opta por escrever. Escreve e diz que é isso, que é o caminho dela indo para a aula de piano e que tem pessoas, árvore, flor, até chegar ao meu prédio. Diz que não tem título.

3.4.2 Depois de tocar piano:

Após a aula, Juliana realiza uma seqüência de três desenhos espontâneos. Faz, primeiramente, os desenhos, dizendo não estar satisfeita com a sua produção. Não consegue expressar o que está sentindo, o que gostaria de produzir, de fato. Após fazê-los, olha para cada um. Pergunto se gostaria de fazer uma história, então, ela pega o lápis e retorna, do último para o primeiro, escrevendo um texto em cada um. As produções gráficas são empobrecidas, com ênfase no uso das palavras. Juliana demonstra sua insatisfação, entra em contato com o que produz e descobre que pode buscar outras formas de expressão, no caso, a escrita.

1º desenho (ANEXO 9):

Pontos focais e interpretação: O desenho provoca sentimentos de paz, tranqüilidade, alegria.

Fez o desenho de uma figura humana, localizado na parte inferior-esquerda, próximo ao centro. Comparada às figuras anteriores, está mais centralizada, sinalizando para um deslocamento à direita, que pode significar a possibilidade de maior consciência de uma identidade. A figura possui cabelos, olhos, boca e nariz, apresentando uma diferenciação.

Na figura humana a presença de cabelos pintados com grafite e de óculos sugere ainda de forma inconsciente uma possibilidade de correção da visão de mundo, os olhos estão bem definidos, centralizados em relação aos óculos. Há o

desenho de gola, sinalizando para a existência de pescoço, o que sugere uma integração entre cabeça e corpo.

Há presença de sublinhados no chão, sinalizando ansiedade e a necessidade de complementação e fortalecimento na estrutura e apoio para estar no mundo.

Escreve no desenho o título “Pensando”, na tentativa de transmitir de forma clara a mensagem expressa. Em um segundo momento de observação, acrescenta a sua produção um pequeno texto, a saber:

“Reflexão”.

“O pensamento nos da a idéia de futuro, O futuro: no é presente e o passado.

Viva bem o presente, pense no passado, e não espero no futuro”

Juliana escreve sobre a “Reflexão”, refere-se sobre a possibilidade de pensar e que o pensamento faz referência ao futuro, mas este é presente e passado. Diz ainda que se deve viver bem o agora, pensar sobre o passado e estar aberta ao futuro, não esperar, deixar fluir.

Inquérito: Juliana fala que não gostou do que fez, não conseguiu expressar o que gostaria, pergunto se tem alguma história e diz que não, pergunto sobre título e ela escreve “Pensando”. Diz que não gostou. Sugiro uma nova produção, e ela aceita. Após a terceira produção, ela retorna e escreve, por fim, o texto acima descrito.

2º desenho (ANEXO 10):

Pontos focais e interpretação: o desenho mobiliza a impressão de pós- nascimento, a imagem remete à lembrança de um feto ou recém-nascido, fragilidade.

Desenha uma imagem bastante precária, com uma cadeira, uma figura humana muito pequena sentada e uma tentativa de desenhar um piano. A imagem

está praticamente centralizada na parte inferior do papel, sinalizando uma transição do inconsciente para a consciência.

A cadeira possui encosto, é um assento que aparenta ter estrutura, um apoio, onde está sentada uma pequena figura humana, que possui cabeça com boca e olhos, ainda que feita em forma de palitos, mostrando precariedade e infantilidade na sua estrutura egóica.

Há extensão nos braços, que se ligam ao piano. Entende-se por extensão qualquer instrumento desenhado nas mãos de uma figura. Dessa forma, o braço está estendido até o piano. Pode-se pensar que o desenho demonstra já a possibilidade de contato com o piano e tudo que isso significa para ela. Ainda que seja uma figura precária, ela expressa de forma clara a sua ligação com o instrumento de expressão de seus sentimentos e emoções.

Insatisfeita com sua produção, Juliana faz um rabisco no meio, diz que quer fazer outro desenho.

Em um segundo momento, retoma esta produção e usa palavras, escrevendo um pequeno texto, na parte central do papel:

“O nascimento” Do símbolo a vida

Do som um sentido.

Da música um conjunto para Conviver OO em comunidade.

O uso das palavras mostra a necessidade de ser compreendida em sua expressão. No caso, ela faz um esboço do piano e de uma figura ligada ao instrumento musical e escreve sobre o nascimento do símbolo que origina a vida, do som que origina um sentido e da música como um conjunto para a convivência com a comunidade. Pode indicar a potencialidade ressoada pelo contato com o piano de uma dinâmica viva, que possui sentido e é compartilhada.

Inquérito: Diz que é ela sentada tocando piano. Diz que está insatisfeita com a expressão. Deseja fazer uma borboleta que tenta expressar no rabisco feito ao centro. Não consegue. Ofereço outro papel, faz uma terceira produção. Ao termino desta, retoma todos os desenhos, e faz as histórias, do final, para o começo.

3º desenho (ANEXO 11):

Pontos focais e interpretação: O desenho mobiliza um sentimento de simplicidade, singularidade, liberdade.

O último desenho dessa seqüência é uma borboleta, desenhada no canto inferior-esquerdo, tendendo ao centro, o que demonstra que é a expressão de algo que tende à consciência.

A borboleta é pequena, o traçado é firme, possui detalhes no corpo, (quatro divisões), e nas asas (quatro partes). Possui também antenas. A borboleta surge como um símbolo de transformação após o tema do desenho anterior, que era o nascimento.

Após finalizar o desenho, o olha, não dá título, e decide escrever um pequeno

texto:

“A Borboleta”

“Início da vida: uma larva Desenvolvimento: metamorfose Fase adulta Eis uma borboleta.

É preciso enfrentar algum inseto (feio)

Se quiser algum dia conhecer a uma borboleta (belo)”

O uso das palavras indica a expressão e comunicação com maior clareza ao que deseja transmitir. Nesse sentido, o texto descreve as fases de desenvolvimento da borboleta, o início como uma larva, o desenvolvimento como metamorfose e a fase adulta em que se torna a borboleta. Isso sinaliza para a possibilidade de renascimento e de desenvolvimento, por meio da transformação de algo que se

inicia em um estágio embrionário, a larva, transforma-se durante um processo de desenvolvimento e atinge, já fase adulta, a liberdade, ganhando asas e podendo voar livremente. Além disso, Juliana escreve sobre a transição, expressa que também é preciso enfrentar o feio, o inseto se quiser conhecer o belo, a borboleta, sinalizando para a fluidez entre as polaridades no processo de desenvolvimento.

3.5 Quinta aula

3.5.1 Antes de tocar piano (ANEXO 12):

Pontos focais e interpretação: O sentimento mobilizado pelo desenho é de pertencimento, de tranqüilidade, paz, de possuir um lugar.

Faz o desenho de uma igreja, um sol, de uma figura humana e de um ônibus. A Igreja tem tamanho grande e está localizada no quadrante inferior-esquerdo, tendendo ao centro, o que sinaliza para recursos pré-conscientes. A Igreja sinaliza para o lugar de algo sagrado, da espiritualidade, possui uma porta com fechadura, que significa a possibilidade de controle de entrada e saída, de contato com o mundo externo, além de duas janelas no alto, que permitem também a relação entre interno e externo, entrada de luz para o interno e maior visibilidade de dentro para fora, além de ter um telhado, que simboliza um espaço para a fantasia e reflexão e, sobre este, uma cruz, enfatizando a expressão de um local sagrado e próprio.

No quadrante superior-esquerdo há um sol que possui com olhos e raios. Ainda que inconsciente e infantilizado, significa a possibilidade de uma luz que vê, que observa e que transmite calor, iluminação.

No quadrante inferior-direito há a figura de uma pessoa, com cabelo, olhos, nariz e boca, é diferenciada e bem definida, com traços firmes. Ela possui um pescoço alongado, apontando para a integração entre corpo e cabeça, seu tronco é

definido, sendo aqui o lugar das emoções, e o uso de saia, de uma vestimenta feminina.

A presença de mãos continua sendo omitida, mas a figura ganhou tamanho, proporção em relação à Igreja e relação com o mundo e com os elementos externos.

Há também neste quadrante, na extrema direita, um ônibus com porta dianteira, nove janelas, sendo quatro no andar inferior e cinco no superior, carburador e quatro rodas, com movimento sentido à direita. O ônibus apresenta um tamanho menor em relação à figura humana, embora seja de dois andares, sinalizando certa desproporção em relação às demais figuras. Porém, sinaliza para a possibilidade de ser um meio de transporte coletivo, duplo, grande, um recurso que faz o movimento do inconsciente para a consciência, com portas, ou seja, a possibilidade de controle de entrada e saída e de troca com o mundo externo.

Inquérito: Juliana diz que é ela saindo do convento para a aula de música. Não dá título. Embora o movimento do ônibus seja para a direita, sua descrição novamente enfatiza para o movimento da direita para a esquerda, reforçando a hipótese de que a aula de piano representa a possibilidade de contato com os recursos do inconsciente, localizados à esquerda.

3.5.2 Depois de tocar piano (ANEXO 13):

Pontos focais e interpretação: O desenho mobiliza sentimentos de firmeza, sustentação.

No desenho há uma figura humana de tamanho grande, uma caixa ou partitura com símbolos musicais, uma cadeira e um piano.

No quadrante inferior-esquerdo está a figura humana, com cabelos, óculos, nariz e boca. A figura é grande, com traço firme, que indica discriminação e diferenciação do eu. A blusa tem colarinho e mostra parte do pescoço, indicando uma ligação entre cabeça e tórax, entre razão e emoção.

No centro há um quadrado, indicando uma partitura, que é o local onde se escrevem as músicas, as criações musicais, através dos símbolos musicais. Em sua metade esquerda estão as claves musicais, de fá e de sol, apontando para a possibilidade de integração dos sons, dos graves e dos agudos e da possibilidade de nomear e localizar as notas musicais, que definirão uma música. Já à direita existem duas notas, especificamente, duas semicolcheias interligadas, cujo valor desta figura é oito. A figura musical é o símbolo do tempo na música, ela indica a porção de tempo necessária para a expressão de cada som.

No quadrante inferior-direito há uma cadeira e um piano, com cinco divisórias que se referem ás teclas do piano. Está localizado à direita, simbolizando um recurso disponível para a consciente e que pode traduzir e expressar a partitura desenhada entre a figura humana e o piano. Embora as mãos estejam atrás do corpo, os símbolos musicais estão flutuantes em uma partitura entre a figura humana e o piano, sugerindo um objeto transitório de expressão das singularidades.

Há presença de sublinhado nas pernas e no chão onde está o piano, indicando a necessidade de fortalecimento ou complementação dessas partes, embora mais estruturados que as demais produções aqui analisadas.

Inquérito: Juliana demonstra estar cansada de desenhar em todas as aulas. Não fala muito, diz que é ela, as notas musicais e o piano. Não dá título.

4 Síntese (por aula) e sobreposição dos desenhos

Furth (2004) sugere que quando os desenhos são produzidos em uma seqüência, é interessante colocá-los um em cima do outro e contra a luz, juntar as figuras pode ser instrutivo e fornecer insights sobre o psiquismo da pessoa.

Faremos, pois, uma síntese dos desenhos, por aula, acrescentando as mudanças verificadas através da sobreposição das produções em cada dia de aula.

4.1 Primeira aula:

1º desenho (antes de tocar piano): É relevante sinalizar a presença de recursos vitais da psique à extrema direita, a árvore e o prédio, além do desenho de duas figuras humanas, que embora precárias, possuem olhos, nariz e boca, sinalizando para uma possível diferenciação.

Outro ponto é o desenho do metrô, elemento feito no centro do papel, que pode indicar o meio de transporte que circula no subterrâneo, o que aponta para um trajeto inconsciente num plano inconsciente. Pode-se pensar que no caminho para a aula ela faz um percurso ao inconsciente, a aula de piano permite uma mergulho no inconsciente.

Além destes, há na extrema direita uma estrada, com um semáforo, que é um elemento organizador. Embora o movimento observado seja ambíguo, Juliana afirma que vai da direita para a esquerda, sugerindo uma saída da consciência em direção aos conteúdos inconscientes, que chegam até o prédio e a árvore, local este, onde Juliana define como sendo o lugar do piano.

2º desenho (depois de tocar piano): Na extrema esquerda surge um novo elemento, que é uma flor, pintada de rosa, amarelo e com caule marrom escuro e grande em relação aos demais elementos. Há o uso cuidadoso de cores, sinalizando para a possibilidade de expressão dos sentimentos. Ao lado tem uma casa, também pintada, com as cores vermelho e marrom, com porta e janela, porém sem fechaduras, outro elemento novo, que pode representar um lugar mais individualizado, quando comparado a um prédio.

Estes novos elementos apontam para o despertar de potencialidades vitais do inconsciente, que surgem como possibilidades a serem incorporadas à consciência. A árvore, que antes estava à extrema direita, agora ocupa a posição quase que central do desenho, possui uma copa verde grande e um caule marrom bem estruturado.

No quadrante inferior-direito tem uma estrada, pintada de marrom, com um pequeno carro, e, segundo Juliana, o movimento é da esquerda para à direita, e na estrada, é ascendente, representando a saída do inconsciente em direção ao presente, consciente, ao aqui agora. O automóvel, embora pequeno, é um meio de locomoção particular, diferentemente dos meios coletivos.

Sobreposição do 1º e 2º desenhos: No 1º, o movimento, embora aparentemente ambíguo, é relatado por Juliana como sendo da direita para a esquerda; já no 2º, ela o descreve da esquerda para a direita.

Na primeira figura, o metrô ocupa o lugar central da produção. Quando sobrepostos, no lugar do metrô (1º desenho), há uma árvore, parte da casa à esquerda e parte do caminho que é ascendente, à direita (2º desenho). Pode-se sugerir que o metrô deu lugar à árvore, símbolo de vitalidade, sendo que a casa, o lugar próprio, está relacionada ao inconsciente, no quadrante esquerdo. Já à direita, tem-se o caminho, ascendente, como uma possibilidade que tende à consciência. As duas pessoas com rosto do primeiro desenho ocupam o lugar do que será a flor e a frente da casa, no segundo desenho, símbolos que podem estar relacionado com o desenvolvimento espiritual e individual.

4.2 Segunda aula:

1º desenho (antes de tocar piano): Inicialmente foi desenhado no verso da folha um vulto humano, uma tentativa de desenhar uma figura humana. É possível pensar em uma tentativa de identidade, porém ainda muito precária.

Insatisfeita, Juliana tenta apagar, desiste e usa o outro lado do papel, onde desenha uma figura humana pequena, à extrema esquerda, com lágrimas no rosto. Esta figura é mais detalhada, com pernas, pés, tórax e cabeça. Ainda inconsciente,

há uma tentativa de expressão de si mesma, porém circundado por sentimentos de tristeza e sofrimento.

Os olhos são tortos, possuem um esboço de óculos, sinalizando para a possibilidade, ainda muito singela, de olhar internamente e externamente. As mãos estão omitidas, sugerindo dificuldade em contato social e não há pescoço, não havendo, pois uma conexão entre tórax e cabeça, simbolicamente, entre sentimentos e razão.

À direita da figura há um balão com duas figuras musicais, a clave de sol e de fá, que são essenciais no piano para a execução dos sons graves e agudos. As claves podem ser entendidas como as chaves que possibilitam a construção e identidade da música, sem as quais, na música ocidental, não se compõe ou executa uma partitura. Juliana parece expressar que a música pode sinalizar um canal para o encontro de si mesma e de sua identidade.

2º desenho (depois de tocar piano): Ainda localizada no quadrante inferior esquerdo, Juliana desenha uma figura humana, já mais definida, com um olhar mais centralizado e com óculos. Parece que é possível ter uma melhor definição da visão de mundo e de si mesma. Além disso, escreve no papel o título “serenidade”. Pode- se pensar que, após tocar piano, Juliana vê-se mais estruturada, podendo entrar em contato com seus sentimentos e buscando maneiras claras de expressar a si mesma.

Sobreposição do 1º e 2º desenhos: Foram realizadas em ambas as produções desenhos de figuras humanas. Quando sobrepostos, há um deslocamento da 2ª figura para a direita e esta também se encontra mais acima do que a primeira. Isso sugere, ainda que inconscientemente, uma melhor definição do eu, maior, tendendo à consciência, com a possibilidade de, ao entrar em contato com si mesma, sentir-se serena.

4.3 Terceira aula:

1º desenho (antes de tocar piano): Faz novamente o desenho de uma figura humana, ainda que localizada no quadrante inferior-esquerdo. Porém, quando comparada com as anteriores, está mais à direita, voltando-se mais para o campo da consciência.

O diferencial desta figura é a presença de mãos, ainda que precárias e também o título escrito, “a solidão”, possivelmente expressando a tentativa de buscar contato social, simbolicamente através das mãos, porém o sentimento de viver “a” sua solidão, ao tentar mostrar-se e interagir com o mundo.

Além disso, o chão possui várias camadas, sinalizando para a instabilidade interna e o sofrimento que vive quando tenta se expressar, “mostrar suas mãos”, simbolicamente.

2º desenho (depois de tocar piano): A figura humana é novamente repetida, porém com o uso cuidadoso de cores nos cabelos, nas roupas e nos pés, tendo um aspecto saudável e fortalecido. Os óculos receberam um contorno rosa, sinalizando para uma visão mais nítida e colorida do seu mundo interno e externo.

Provavelmente tocar piano possibilitou a Juliana o contato com seus sentimentos e o resgate de recursos e potenciais inconscientes. Há no desenho, à direta, uma pequena casa, e à esquerda um pequeno automóvel, ambos cuidadosamente pintados.

Sobreposição do 1º e 2º desenhos: No 1º, o movimento aparenta ser da direita para a esquerda, já no 2º, o carro está direcionado para à direita, e ela relata o movimento da esquerda para à direita.

Nos dois desenhos foram feitas figuras humanas. Quando sobrepostos, as duas figuras ocupam exatamente a mesma posição no papel, diferenciando-se no tamanho, na forma e no uso de cores. No 2º desenho a figura humana é maior,

colorida, mais bem definida quando sobreposta à primeira, enfatizando para o fortalecimento do eu.

Além disso, observando os desenhos, Juliana parece resgatar e sintetizar nesta produção os elementos individuais, a casa e o carro, que surgiram nas produções anteriores. Isso sinaliza para o fortalecimento do eu e de ver-se capaz de usar recursos vitais, como a casa, que simbolicamente pode ser vista como um local de encontro com si mesma e o automóvel, como possibilidade de transitar entre inconsciente e consciente.

O título escrito no desenho “Indo para a casa” reforça a possibilidade de que após tocar piano Juliana volta-se para si mesma, vai para um lugar de pertencimento do seu eu.

4.4 Quarta aula:

1º desenho (antes de tocar piano): O movimento deste desenho é de descida, para a esquerda, e há uma estrada entre a árvore/flor (à direita) e uma pequena figura humana bem definida e o prédio (à esquerda). Reforça a idéia de que antes das aulas os desenhos possuem movimento da esquerda para a direita, simbolicamente, do consciente para o inconsciente.

À extrema esquerda tem-se um prédio, retomando o desenho inicial, onde, na mesma posição, tinha um prédio com três andares. Nesta produção, entretanto, o prédio está maior, possui doze andares, e está mais à direita. Simbolicamente, o prédio é uma moradia coletiva, o que possibilita pensar nos recursos advindos do inconsciente coletivo. Nas produções de Juliana, com o passar do tempo, este elemento que está localizado no quadrante esquerdo, que é um elemento do inconsciente, dobrou de tamanho. Neste sentido, o prédio é o local onde o piano se situa, favorecendo a hipótese de que este instrumento musical pode representar um canal entre os níveis inconsciente e consciente e um símbolo de transformação.

Os elementos árvore e flor reaparecem também nesta produção, sintetizando os dois primeiros desenhos. Ambos, desta vez, estão já mais à direita, praticamente na parte central do papel, apontando para um possível direcionamento consciente dos recursos vitais individuais, do eu (a árvore) e espirituais (a flor).

Além disso, Juliana inicia uma seqüencia de produções em que se expressa por palavras, escrevendo uma pequena história, expressão esta que se repetirá nos três desenhos que o sucedem, após a aula de piano:

“Hoje 13:00 h sai de casa, para ir a aula de música. Peguei o ônibus e metrô, cheguei na _aula_ +- 14:10 h.”

Juliana oferece, aqui, noções de tempo, hora, necessários para fazer o percurso da casa ao piano. Fala, provavelmente, de um tempo interno, imprescindível para fluir entre as dimensões do eu e do si mesmo. Diz também da necessidade de uso de recursos coletivos para chegar até o local da aula, apontando para potenciais do inconsciente coletivo que emergem através da transformação propiciada pelo contato consigo, quando toca piano.

2º desenho (depois de tocar piano): Após tocar piano, neste dia, Juliana faz uma seqüência de três desenhos. No primeiro, desenha uma figura humana, que, quando comparada com as anteriores, recebe gola na camisa. Isso pode sinalizar para uma inicial integração entre tórax e cabeça, entre sentimentos e razão.

Escreve o título “Pensando”. Não gosta de sua produção, deseja fazer outra. Em um momento posterior, após executar os três desenhos, ela o retoma e escreve uma história:

“Reflexão”.

“O pensamento nos da a idéia de futuro, O futuro: no é presente e o passado.

Viva bem o presente, pense no passado, e não espero no futuro”

O texto descreve a “Reflexão”, o flexionar-se novamente para si mesmo, que acontece a partir do pensar (de uma consciência) e de um mistério (de uma idéia de futuro). O futuro em si é uma idéia, e é, na realidade, o agora e o que passou. Novamente Juliana retoma o seu tempo interno, a possibilidade de ter consciência no tempo do agora e do passado. No tempo verbal imperativo (Viva), deve-se experimentar a vivência do agora e a respeito do que é passado, é preciso pensar, dar um sentido. Apropriar-se da vivência do agora de forma consciente, tendo uma ampliação da consciência. Não se espera do futuro, que é abertura, fluidez, mistério, desconhecido.

3º desenho (depois de tocar piano): Insatisfeita com o desenho anterior, Juliana faz um piano e uma pessoa sentada em frente, ligada pelas mãos ao instrumento musical. Fala que gostaria de desenhar ela no piano, mas não gosta da sua produção. Faz um rabisco no meio, dizendo que gostaria de desenhar uma borboleta, que é, então, feita, em outro papel.

As figuras desenhadas são extremamente pequenas e mobilizam sentimentos de fragilidade e de algo embrionário. A pessoa sentada está ligada ao piano por uma extensão das mãos. Nesta produção o piano surge como um prolongamento das mãos, sinalizando para a possibilidade de se expressar e relacionar-se com o mundo interno e externo através do piano.

Após finalizar o último desenho, retoma esta produção e escreve um texto, que confirma as observações feitas em relação a produção gráfica de Juliana:

“O nascimento” Do símbolo a vida

Do som um sentido.

Da música um conjunto para Conviver OO em comunidade.

Juliana descreve “O nascimento”. Seu texto diz sobre a possibilidade do nascimento, fala do símbolo que explica a vida, ou seja, o nascimento da vida consciente, do eu. Diz ainda sobre o som, que propicia um sentido, enquanto

significado e direção, um canal entre a consciência (sentido/significado) e o Self, que dirige o eu.

Da música, que é organização do som, nasce o com-junto, o com-viver, em comum-unidade. Junto-Viver-Unidade. Juliana parece expressar o fluir entre as polaridades do Self. Simboliza aqui, as infinitas possibilidades de comunhão oriundas do inconsciente coletivo e, também possíveis de se pensar, em nível consciente, na comunidade humana, na vida em comum, enquanto ser humano que tem uma consciência de si e do todo.

4º desenho (depois de tocar piano): Após fazer um esboço de borboleta na folha anterior, Juliana pede outro papel e diz que deseja desenhar uma borboleta. Desenha uma pequena. A borboleta é o símbolo da transformação, da renovação, da libertação do casulo, da beleza, e da conexão entre superfície e céu, de libertação do si mesmo, e da fluidez entre consciência e inconsciente, terra e ar.

Para se expressar melhor, finaliza com um texto, descrevendo-a:

“A Borboleta”

“Início da vida: uma larva Desenvolvimento: metamorfose Fase adulta Eis uma borboleta.

É preciso enfrentar algum inseto (feio)

Se quiser algum dia conhecer a uma borboleta (belo)”

Sobreposição do 1º e 2º desenhos: Neste dia, foram feitas três produções após a aula de piano. Quando sobrepostos o 1º desenho (anterior à aula) com a primeira produção após a aula, no final da estrada traçada no 1º desenho está, no segundo, a figura humana. Pode-se pensar que a estrada é uma conexão que vem do inconsciente e que tom forma, num segundo momento, na figura humana, que está bem definida e origina o texto sobre a reflexão.

Quando sobrepostos o desenho do início da aula com o segundo (depois da aula), a flor do primeiro ocupa o lugar no qual posteriormente será desenhado o piano. A flor, símbolo da espiritualidade, das potencialidades profundas do

inconsciente coletivo, é substituída pelo piano. Isso favorece a hipótese de que o piano propicia uma conexão com os elementos do inconsciente coletivo.

A sobreposição do primeiro e do último desenho demonstra que no final da estrada desenhada na 1ª produção, surge, na última, a borboleta, a qual coincide com a figura humana do primeiro (depois da aula). Isso faz pensar na borboleta enquanto um símbolo de transformação e renascimento que emerge a partir de uma consciência.

4.5 Quinta aula:

1º desenho (antes de tocar piano): Esta produção se diferencia das demais no que diz respeito à qualidade do grafismo, tamanho das figuras, característica da figura humana. Introduz a figura de uma Igreja, grande, localizada na parte esquerda, ainda inconsciente, simbolizando um local do sagrado, de elementos profundos e inconscientes. A figura humana é uma mulher, de saia, e está na parte inferior direita, expressando sua polaridade feminina que é consciente.

Por fim, na extrema direita há um ônibus, grande, que se movimenta da esquerda para a direita. Retoma um elemento utilizado no desenho inicial, o ônibus, que estava se deslocando da direita para a esquerda, segundo o relato de Juliana, que foi pintado de verde, porém sem portas e janelas e com pessoas encapsuladas. Nesta produção, há presença de porta e fechaduras, há acesso de entrada e saída, janelas, ou seja, comunica-se com o meio interno e externo, tem saída de carburador, permitindo a produção de uma energia que é filtrada. Ele é duplo, grande e desloca-se da esquerda para a direita. É possível dizer que ele sai do inconsciente (no desenho inicial) pequeno, frágil, mergulha no inconsciente e chega ao aqui agora, à consciência fortalecido, grandioso, portador de potenciais diversos do inconsciente coletivo.

2º desenho (depois de tocar piano): Faz o desenho de uma figura humana definida, a maior de todas e um piano à direita, também maior e mais definido. Entre eles há a partitura, retomando as figuras musicais presentes no desenho da segunda aula, as claves de sol e de fá, e acrescentando também figuras musicais que simbolizam a noção de tempo, à direita da partitura. As figuras e a partitura simbolizam o objeto de transição entre a pessoa e o piano.

Sobreposição do 1º e 2º desenhos: Quando sobrepostos os desenhos feitos neste dia antes e depois da aula, é possível ver que a Igreja do desenhada na 1ª produção ocupa exatamente a mesma área da figura humana do segundo. É possível sugerir, nesse ponto de vista, que a figura humana emerge da igreja, ou está dentro da igreja. A Igreja contém a figura humana na sua totalidade. Simbolicamente, podemos compreender a Igreja como o local do sagrado, da espiritualidade e, pensar que o eu, agora mais estruturado, se origina a partir de uma dimensão maior, sagrada, universal.

Outro dado relevante é que no local do ônibus, da 1ª produção, está exatamente, no segundo, o piano, sugerindo que o piano pode simbolicamente significar um veículo de expressão, de movimento de energia que transporta elementos originários do inconsciente coletivo.

CAPÍTULO VI – ANÁLISE E DISCUSSÃO

“A Borboleta”

“Início da vida: uma larva Desenvolvimento: metamorfose Fase adulta Eis uma borboleta.

É preciso enfrentar algum inseto (feio) Se quiser algum dia conhecer uma borboleta (belo)”

(Juliana, Maio de 2009)

A presente discussão tentará abordar três aspectos que parecem fundamentais na observação dos dados.

O primeiro diz respeito a uma análise simbólica dos principais elementos que surgiram nas produções gráficas e textuais de Juliana. Dessa forma, serão discutidos os significados dos símbolos, a saber: da Igreja, da mão, do coração, da árvore, da flor, da casa, do carro e da borboleta, buscando se aproximar de uma possível compreensão simbólica do piano.

O segundo aspecto refere-se à mobilização de conteúdos do inconsciente pessoal de Juliana, suas relações familiares e os aspectos reprimidos durante o seu desenvolvimento. O piano pode, sob este prisma, ser compreendido como um veículo de resgate dos conteúdos pessoais reprimidos. Para Juliana, tocar piano significou entrar em contato com o seu sentimento de baixa auto-estima, com a dificuldade de falar de si mesma e de se relacionar socialmente, da castração de sua expressividade e sentimento, fatores tais que desvitalizam a estruturação do ego durante o desenvolvimento.

Por fim, o terceiro aspecto abordará sobre os recursos que o aprendizado do piano pode oferecer em termos de saúde mental, definindo esta, como um fluir e manutenção do eixo Ego-Self, no caminho para a individuação, que é entendida como um processo em espiral que se desenvolve no decorrer de toda a vida.

1. Discussão e análise dos símbolos

Todo o processo de construção deste trabalho foi permeado pelo tema do piano, seja pelas definições de som e de música, seja por meio da relação ensino- aprendizado do piano, seja nas conversas, entrevistas e produções gráficas realizadas por Juliana. Surge, então, a pergunta: como podemos entender simbolicamente o piano? O que podemos dizer, a partir dos conceitos da psicologia analítica sobre o piano e qual o sentido que podemos dar a ele partir deste ato de pensamento?

Para responder essa pergunta, é interessante compreender o significado simbólico de alguns dos elementos trazidos por ela.

Para Juliana, a Igreja é um elemento que surge logo na sua entrevista, como um lugar onde existe música: “na igreja sempre tem música (…) essas pessoas parecem que estão felizes, que melhoram (…) são mais felizes, mais alegres, mais abertas, acho que se eu aprendesse talvez eu pudesse ser igual”.

Ela associa a Igreja ao lugar da música e música com alegria, felicidade, saúde, abertura. Deseja ter em si tais vivências. A Igreja vai surgir novamente nas suas produções no último dia de aula avaliado, após uma seqüência de produções extremamente significativas, referentes à figura humana, à reflexão, ao nascimento, à transformação. É uma Igreja grande, localizada na parte esquerda e que, curiosamente, após a sobreposição dos dois desenhos, no segundo, tal Igreja ocupará exatamente o lugar de uma figura humana, grande, com traços firmes e é estruturada. A Igreja contém a figura humana na sua totalidade.

Segundo Chevalier e Gheerbrant (2009), a Igreja muitas vezes é comparada à Virgem e denominada esposa de Cristo, uma imagem de mulher, a imagem do mundo, o microcosmo e a alma humana. Pode-se aplicar todo o simbolismo da mãe, o mar e a terra, receptáculos e matrizes da vida, onde a vida e a morte são correlatas, nascer é sair da mãe, morrer é retornar à terra. Mãe é segurança, abrigo, nutrição, calor, mas também o risco pela opressão, sufocamento através de um prolongamento excessivo da função alimentadora e guia, a generosidade

transformando-se em captadora e castradora. Seguindo a mística Cristã, a Mãe é a Igreja, concebida como comunidade, onde os cristãos encontram a vida da graça, mas onde podem também sofrer uma tirania espiritual abusiva. Para a psicologia analítica também a Igreja remete ao símbolo da mãe, que tem como base o arquétipo materno.

A partir do desejo de aprender música, sente-se atraída pelo piano, por influência do seu som: “eu acho que o som dele (piano) é diferente, traz mais vida, pode articular a mão e o coração (…) pode sentir você, pode sentir dentro de você (…) você pode colocar o ritmo, usar as duas mãos com o mesmo movimento” (sic). Aqui Juliana associa o som do piano à vida, à possibilidade de articular mão e coração.

A mão surge como um elemento central nas produções de Juliana. Além de relacionar o piano como a possibilidade de articular mão e coração, a mão é um elemento omitido na maioria dos desenhos. Ela surge na terceira aula, na primeira produção deste dia, desenhadas de forma precária e recebe o título, em palavras escritas no papel, de “A Solidão”. Tenta mostrar as mãos, mas se sente sozinha. As mãos reaparecem na Quarta aula, tendo o piano como extensão delas. Nesta produção o piano surge como um prolongamento das mãos, havendo, então, a possibilidade de relacionar-se com o mundo interno e externo através do piano. Nesta produção é feito o texto “O nascimento”. Quando sobrepostos, o piano está desenhado no lugar que originalmente era ocupado pelo desenho de uma flor.

No que diz respeito ao simbolismo da mão, segundo Chevalier e Gheerbrant (2009), a mão exprime idéias de atividade, ao mesmo tempo em que remete a idéias de poder e de dominação. É um símbolo de ação diferenciadora, é como uma síntese, exclusivamente humana do masculino e do feminino, passiva naquilo que contém e ativa no que segura. A combinação dos princípios masculino e feminino dá plena significação à alma, o masculino emite a força da vida, espiritual, que dá sentido aos símbolos, e vital; a alma que anima a carne é feminina, é receptiva e ambos simbolizam dois aspectos complementares ou perfeitamente unificados do ser, do homem e de Deus. A mão pode se prolongar através de seus instrumentos, diferenciando o homem de todos os animais e servindo também para diferenciar os objetos que toca e modela. É às vezes comparada aos olhos: ela vê, estão ligadas

ao conhecimento, à visão, ao fim, à linguagem. Neste sentido, os olhos também ganham uma dimensão importante nas produções gráficas de Juliana, pois, na maioria das vezes são delimitados com o uso de óculos. O olhar precisa ser corrigido. O olho, por sua vez, é o órgão da percepção visual, é o símbolo da percepção intelectual. A abertura dos olhos é um rito de abertura ao conhecimento, um rito de iniciação, associado também ao sol, como fonte de luz, de conhecimento e de fecundidade. Conhecimento também relacionado à intuição. É possível pensar que ter em mãos o piano significa entrar em contato com o Self, viver uma síntese entre masculino e feminino, entre conhecimento e intuição, entre ativo e passivo, entre criação intelectual e fecundidade. Nesse sentido, o piano par ser compreendido como a expressão da função transcendente, que faz a ligação entre o ego e o Self, como já foi definido anteriormente, no Capítulo III, referente à Fundamentação Teórica.

Já o simbolismo do coração remete ao órgão central do indivíduo, á noção de centro, o centro da personalidade, o centro vital do ser humano, é o centro da individualidade para onde a pessoa retorna na sua caminhada espiritual, representa o estado primordial, inicial. O duplo movimento (sístole e diástole) faz dele o símbolo do movimento de expansão e reabsorção do universo. Na tradição bíblica é o homem interior, sua vida afetiva, a sede da inteligência e da sabedoria. O piano é significado por Juliana como possibilidade de articular a mão ao coração. Pode também “por o ritmo que você quiser, você pode colocar o ritmo, usar as duas mãos com o mesmo movimento”. Nas suas produções gráficas, é relevante observar que a figura humana é inicialmente feita em palitos, sinalizando para uma fragilidade e infantilidade do ego. Nas produções seguintes, esta figura vai se transformando, recebendo forma, cores, definições. O tórax, região onde se encontra o coração, vai se definindo e, ao final das produções é possível observar uma diferenciação desta figura e, inclusive, a existência de pescoço, que faz a conexão entre a região do tórax e da cabeça. Há, por fim, uma integração entre sentimentos e pensamento, mas também entre o centro individual, o coração, e o centro da razão, do conhecimento, a consciência. É possível por o ritmo, o duplo movimento do coração, a expansão e reabsorção do universo.

Outro elemento que é constante em seus desenhos é a árvore. Ela surge logo na primeira produção gráfica de Juliana, à extrema direita, ao lado de um prédio (local onde está o piano) e acompanhada de meios de locomoção coletivos (ônibus e metrô). Está mais a direita no desenho seguinte, após a aula de piano, recebendo cores, e a companhia de uma flor, de uma casa e de um pequeno carro coloridos cuidadosamente. Ambas, árvore e flor ressurgem no início da Quarta aula, ocupando, já mais a parte central do papel, como uma síntese dos dois desenhos da primeira aula. Há aqui um conjunto de símbolos a serem analisados neste processo.

A árvore é o símbolo da vida, em perpétua evolução e em ascensão para o céu, simboliza o aspecto cíclico da evolução cósmica, morte e regeneração, se comunicando com o subterrâneo, a superfície da terra, e às alturas, atraída pelos raios do sol; é o símbolo das relações que se estabelecem entre terra e céu. Tem o sentido de eixo do mundo, sendo vista como macho e também fêmea, o que leva Jung a uma interpretação simbólica em termos de hermafroditismo. Essa ambivalência do simbolismo da árvore, que é ao mesmo tempo falo e matriz e se manifestam em uma árvore dupla, simbolizando o processo de individuação no decurso do qual os contrários existentes dentro de nós se unem. Mas, segundo Chevalier e Gheerbrant (2009), é a cruz, instrumento de suplicio e redenção, que reúne em uma única imagem os dois significados extremos e maior da Árvore, morte e vida. A Cruz, por fim, vai aparecer na penúltima produção de Juliana, em cima da Igreja. Jung, citado por Nise da Siveira (2001) frisa que dentre os múltiplos símbolos da cruz, sua principal significação é o de arvore da vida e de mãe. Segundo a autora, a cruz foi se impondo como símbolo universal, evocada como uma árvore que sobe da terra ao céu, ponte ou escada pelas quais as almas sobre até Deus. Portanto, foi como símbolo do Centro do Mundo que a cruz foi assimilada à Árvore cósmica.

A flor surge após a primeira aula de piano, colorida e proporcionalmente grande no desenho. A flor é a imagem do principio passivo, receptivo. Para São João da Cruz a flor representa as virtudes da alma, do amor e da harmonia que caracterizam a natureza primordial. Nas lendas celtas, a flor aparece como um símbolo de instabilidade essencial da criatura, voltada a uma perpétua evolução e também símbolo do caráter fugitivo da beleza. Muitas vezes a flor se apresenta

como arquétipo da alma, como centro espiritual. Comparando os desenhos da quarta aula, em especial o produzido após a aula, quando Juliana desenha o piano, é possível observar que no lugar em que ela havia desenhado a flor (primeiro desenho do dia), após a aula, na mesma posição, ela desenha o piano. Isso pode sugerir a possibilidade de compreendê-lo enquanto um símbolo que favorece o contato com o centro espiritual, com a alma e com o caráter fugidio da beleza.

A casa é outro elemento que se repete em suas produções, seja no formato simples de uma casa, ou individual de uma oca, ou coletivo como um prédio, ou mesmo sagrado como a Igreja. Segundo Chevalier e Gheerbrant (2009), como a cidade e o templo, a casa está no centro do mundo, é a imagem do Universo. Significa o seu ser interior, e, segundo o filósofo Bachelard, seus andares, seu porão e sótão simbolizam os diversos estados da alma. O porão corresponde ao inconsciente e o sótão, à elevação espiritual. A casa é também símbolo do feminino, com o sentido de refúgio, de mãe, de proteção, de seio maternal. Pensando nas produções de Juliana, a primeira expressão de casa é um prédio, é o local onde está o piano, e é também uma habitação coletiva. É possível, pois, sugerir que o prédio (local do piano) reflete o feminino coletivo, a alma Universal, o refúgio, proteção coletivos. Nas produções seguintes, este elemento vai se tornando cada vez mais individual, representado, posteriormente ao prédio, por uma casa colorida de vermelho e marrom (após a 1ª aula de piano analisada) e que vai ocupar o mesmo lugar, (após a 3ª aula de piano), recebendo as mesmas cores, porém com um tamanho menor e ao lado de uma figura humana mais estruturada quando comparada com as iniciais. Isso possibilita sugerir que os elementos da alma coletiva, possivelmente acessados pelo contato com o piano, vão se tornando singulares e possíveis de se tornarem recursos vitais do ego, de relação com a alma individual.

Finalizando esta seqüência, o carro representa o conjunto de forças cósmicas e psíquicas a conduzir, o condutor é o espírito que as dirige. Se aplicada ao ser humano, o carro representa a natureza física do homem, seus apetites, seu instinto duplo de conservação e destruição, todas as potencias do inconsciente. O condutor do carro representa a natureza espiritual do homem, a consciência. O carro e seus personagens formam, portanto, um único ser humano em seus diversos

aspectos, e uma situação dinâmica, é o veículo de uma alma em experiência, ele transporta essa alma pelo tempo, é um centro de energias em tensão que se deve harmonizar. Segundo a teoria Junguiana, veículo são imagens do ego, refletem os diversos aspectos da vida interior com relação aos problemas de seu desenvolvimento, devendo ser compreendidos no movimento do ego no caminho da individuação. Nos desenhos de Juliana temos um ônibus, coletivo, um trem e carros. No desenho inicial há um trajeto que parte com um ônibus, que é pintado de verde, e vai da direita para a esquerda, continua com um metrô e chega ao prédio. O trem do metrô, por sua vez, pode evocar o ego impessoal que nos conduz onde devemos ir, há uma energia dinâmica que desperta as forças psíquicas efetivamente disponíveis. No caso do metrô, essas forças estão se dirigindo para o subterrâneo, o inconsciente. No desenho seguinte (primeira aula, depois de tocar piano), Juliana desenha um pequeno carro em direção ascendente para a direita, podendo sinalizar o retorno de tal força à energia, de modo individualizado, singular. O veículo surge novamente na após a Terceira aula, como um pequeno carro dirigindo-se para a direita, e, finalmente, no início da Quinta aula, como um ônibus grande, de dois andares, que segue à direita. É possível pensar que a procura pelas aulas de piano é um movimento do ego impessoal, que conduziu Juliana ao inconsciente, despertando as forças psíquicas disponíveis. Torna-se um veículo individual, personalizado e consciente. Chama a atenção o ônibus grande no início da quinta aula, onde, após Juliana tocar, será desenhado o piano, como possibilidade de integração e símbolo de transformação dos elementos originários do inconsciente coletivo.

O último símbolo escolhido para análise e discussão, e bastante significativo é a borboleta, que aparece no desenvolvimento da seqüência de três desenhos após a Quarta aula. A borboleta, para Juliana é, sem dúvida, o símbolo da metamorfose. A crisálida (ou larva, como referiu Juliana) é o ovo que contém a potencialidade do ser. A borboleta, que sai dele, é um símbolo de ressurreição, ou a saída do túmulo. Juliana, na entrevista, também faz referência ao piano e às aulas: “eu me sinto mais renovada, parece que é por dentro, acho que eu renasço, parece que estou dentro do buraco e aí sai” ou em outro trecho quando diz como se sente após as aulas: “eu me sinto livre de tudo que me deixava mal, me dá a sensação de liberdade, de aceitação também”. A borboleta é a alma liberta do invólucro carnal, na psicanálise a

borboleta é vista como símbolo de renascimento.

Juliana, ao tentar expressar-se sobre as aulas de piano, parece descrever por meio de símbolos próprios o processo de individuação sugerido por Jung, principalmente na seqüência dos desenhos feitos na Quarta Aula depois de tocar piano. Como visto no Capítulo III, sobre a Fundamentação Teórica, o ser humano, no decorrer do desenvolvimento evolui de um estado infantil de identificação para um estado de maior diferenciação. Ele parte da diferenciação entre consciência e inconsciência, especializando-se no pensamento, na reflexão, na discriminação e no uso da consciência, que tem como centro o ego. Isso implica na possibilidade de ampliação da consciência, por meio do acesso aos potenciais inconscientes e do contato com o Self, a totalidade.

É um processo de metamorfose, conforme nos aponta Juliana no texto sobre “A borboleta” (Quarta aula, depois de tocar piano, 3ª produção). No início da vida se tem uma larva/ovo que vai se transformar, são os potenciais contidos na essência do ser humano, que recebe uma forma única, um modo de ser único, individual, singular. No caso de Juliana, ela procura mostrar, com muito empenho, a transformação que vislumbra em si mesma. Através dos desenhos e dos poemas ela luta por deixar o mais claro possível o que sente dentro de si. Ao se comparar suas primeiras falas, titubeantes, entrecortadas, reprimidas, com os poemas posteriores escritos nos desenhos, é possível observar uma grande evolução na capacidade de expressão de si mesma e do que está na sua alma. É o nascimento da borboleta, da alma que se liberta do invólucro carnal, suportando alguns insetos (feio). Os insetos podem ser compreendidos na psicologia analítica como a fixação nos complexos arquetípicos que paralisam etapas do processo de individuação e de aspectos que são reprimidos durante o desenvolvimento e que constituem a sombra. Nas palavras de Juliana, “é preciso enfrentar algum inseto (feio) se quiser algum dia conhecer a borboleta (belo)”. Ao enfrentá-los, torna-se livre e como a borboleta, pode interligar céu e superfície, transitando entre polaridades, orientados pela dimensão do Self, em uma conexão fluida entre consciente e inconsciente coletivo. Isso nos leva a pensar que, simbolicamente é possível compreender o piano como um símbolo de transformação, que conecta o ego a dimensões profundas do inconsciente coletivo.

2. Auto-imagem: o piano e a relação com o inconsciente

Como é possível observar pelas falas da entrevista e pela expressão das figuras humanas feitas nos desenhos, Juliana tem bastante dificuldade de falar sobre si mesma, de se relacionar socialmente, tendo baixa auto-estima; “como eu me vejo, é tão difícil essa pergunta eu acho que sou um pouco para baixo, não muita auto-estima”. Sente-se mal de contar sobre sua vida, chora, sente-se incompetente, é evasiva nas respostas, apresenta pouca fluência verbal, demonstrando medo de se expor. Foi muito reprimida na infância, refere sobre o pai que a proibia de se relacionar socialmente e que hoje não é mais vivo, mas fala também, durante as aulas, sobre a dificuldade de seguir em sua escolha, no convento, da dificuldade de enfrentar a família, sobretudo a mãe, que parece exercer uma influência grande nas decisões de Juliana. Parece que o padrão castrador e coercitivo estabelecido na infância a marcou profundamente, havendo uma identificação e repetição deste padrão em todas as situações, não lhe permitindo um canal de expressão de sua individualidade.

Quando fala de sua experiência na Igreja, aos doze anos, teoricamente, parece que faz uma projeção nas pessoas que freqüentam a Igreja. Ela coloca nessas pessoas tudo aquilo que tem dentro dela: felicidade, liberdade, expressão de sentimentos, mas que foram reprimidos e estão, portanto, inconscientes. Segundo a psicologia analítica, a projeção é um mecanismo em que a pessoa vê conteúdos seus inconscientes em outra pessoa, por serem, naquele momento, incompatíveis com a sua personalidade. Juliana projeta aquilo que nela foi reprimido nos participantes do coral. O contato com a música parece sinalizar para a busca de algo, de um eu ideal, que está inicialmente associado às pessoas do coral. O contato com o piano possibilita a reintegração de tais aspectos. Ainda que inconscientemente, ela começa a perceber que há um canal de expressão, uma possibilidade de se apropriar de outras experiências, de outro modo vida.

A Igreja surge, pois, como o ponto inicial, projetado e idealizado de uma possibilidade de um caminho de libertação. Conforme a simbologia da mística Cristã, confirmada também pela analise simbólica da psicologia analítica, a Mãe é a Igreja,

concebida como comunidade. Porém, assume um valor arquetípico, possuindo um aspecto construtivo e outro destrutivo. É na Igreja que os cristãos encontram a vida da graça, mas onde podem também sofrer uma tirania espiritual abusiva. Nesse sentido, é possível pensar que Juliana, inicialmente presa num complexo materno negativo, vislumbra a possibilidade de uma vivência de acolhimento, proteção, felicidade, símbolos do arquétipo materno positivo, numa igreja alegre e acolhedora. A análise dos símbolos referidos na entrevista e representados nos desenhos aponta para a possibilidade de Juliana vivenciar o materno positivamente, vivenciando o cuidado, a expressividade, a nutrição da alma, o calor e a proteção, significando também uma possível libertação de uma vivência sufocante, destruidora e castradora.

As aulas de piano parecem ter representado uma possibilidade de resgate e conscientização do eu reprimido para o eu verdadeiro. O piano parece oferecer um canal para colocar no mundo os seus sentimentos, idéia essa reforçada pelos desenhos feitos após as aulas que receberam cores.

Em todas as aulas, quando comparados os desenhos antes da atividade ao piano e depois, a qualidade das expressões é significativamente diferente. O uso de cores é mais presente após o contato com o piano, podendo sugerir maior contato com a expressão das emoções. As cores utilizadas, no geral, verde, azul brilhante, amarelo, rosa, vermelho e marrom-claro indicam a tentativa e luta de resolução de conflitos internos e a potencialidade para a expressão de recursos vitais, porém, ainda pouco conscientes.

A expressão dos sentimentos também é diferenciada quando se comparam os desenhos iniciais e finais. São expressos inicialmente sentimentos de tristeza, solidão, ao passo que após a aula, os sentimentos são de serenidade e pertencimento.

No decorrer das aulas, o tamanho da figura humana também foi aumentando, forma e firmeza no traço, sinalizando maior segurança na expressão do eu.

Uma observação interessante diz respeito à ausência das mãos em quase todas as produções, com exceção do terceiro dia, quando faz o desenho intitulado “A Solidão”, em que aparecem mãos atrofiadas, pouco desenvolvidas. Conforme

visto na analise dos símbolos, as mãos representam a possibilidade de realizar atividades, e também, em sua polaridade, a autoridade e a dominação. Quando integrados, simbolizam a união entre masculino e feminino, a plena significação da alma, do masculino que emite a força vital, espiritual e do feminino que recebe, acaricia, cuida, simbolizando os dois aspectos complementares e unificados do ser, do homem e de Deus.

Juliana demonstra uma grande capacidade expressiva, sobretudo através da expressão verbal que parece ter sido reprimida. O contato com o piano vem possibilitando o fortalecimento desse potencial, com a articulação de mãos, integração e harmonização de polaridades, como masculino e feminino, grave e agudo, feio e belo, larva e borboleta.

A evolução das figuras humanas, o uso de recursos como o carro, a casa, o prédio, também faz pensar no uso de recursos inconscientes que vêm fortalecendo a estruturação egóica e possibilitando uma abertura também aos conteúdos do inconsciente coletivo e das potencialidades inatas, por meio da expressão do Self e da manutenção do eixo ego-Self.

3. O piano como canal de expressão do Self

Inicialmente, é possível observar que a maioria dos elementos gráficos produzidos por Juliana está situada no quadrante inferior-esquerdo, indicando a expressão de conteúdos ainda inconscientes e obscuros. Nota-se um deslocamento das figuras durante as cinco semanas observadas, passando a ocupar toda a parte inferior (esquerda e direita) nas produções finais. Isso pode sinalizar maior contato com os elementos inconscientes e a possibilidade de incorporá-los à consciência e em suas vivências atuais. Outro dado que parece reforçar tal hipótese é que antes das aulas, na maioria das vezes, o movimento dos desenhos é predominantemente da esquerda para a direita. Já após o contato com o piano, o movimento é inverso, da esquerda para a direita, representando um movimento do inconsciente em

direção ao potencial presente. Nesse sentido, as aulas de piano podem representar uma possibilidade de acesso às potencialidades do inconsciente.

Como foi visto no Capítulo I sobre a Música, Goes (2008), professora de piano preocupada em aprimorar a qualidade da sonora produzida por músicos profissionais, sugere que através da expressão sonora de cada um é possível promover equilíbrio e usar a linguagem musical para acessar o interno da pessoa, favorecendo o seu auto-conhecimento e auto-percepção. Além disso, a autora complementa que, segundo suas observações em aula, o que leva uma pessoa a procurar um aprendizado musical é a necessidade de comunicação, a pessoa sente, mesmo que de forma inconsciente, que existe um som que deseja sair, que tocar pode ser como falar, pode expressar algo de si, comunicando-se através da música.

Parece que no caso de Juliana tais possibilidades foram confirmadas. A ausência de mãos nos desenhos, a dificuldade de comunicação e de fluência verbal, sua postura calada nas aulas, a dificuldade de falar de si mesma apontam para uma dificuldade de comunicação. Entretanto, com o passar das aulas e principalmente após a seqüência de três desenhos da Quarta Aula, depois que toca, Juliana percebe e demonstra sua insatisfação com o que produz, percebe que não consegue expressar o que sente, toma consciência e se permite ver, tenta, então, mostrar-se por meio das palavras. Ela parece experimentar um ego menos rígido, uma expressão menos reprimida de si mesma. Em suas próprias produções textuais, gráficas e sonoras, ela mostrou um grande potencial de captação do que é fundamentalmente saudável para a psique e para a manutenção do eixo ego-Self:

“a maneira como cada nota tem um som, cada momento, a gente responde de uma maneira, né, vai ter dias que você vai estar se sentindo mais introspectivo, e que entre as pessoas isso não pode fazer tanta parte, tem que ter tempo, você tem que dar espaço para o outro lado também, as pessoas precisa da gente assim como a gente precisa delas, não ser muito sozinha. Tem as dificuldades para fazer isso ou não. Cada um tem um som e na vida também é assim, todo dia na vida tem um som diferente para você, tanto bom quanto ruim, é mais o preparo para saber, para ter uma estrutura para saber aceitar o que vier”.

Neste trecho da entrevista, ela sintetiza a capacidade da psique de interagir com a totalidade: cada um possui a sua singularidade, o seu som, a sua psique; mas também a vida oferece um som diferente a cada dia. Há, pois, uma infinita gama de potencialidades a serem acessadas nos arquétipos e no inconsciente coletivo. Juliana acrescenta que é preciso estar preparado para saber, ter uma estrutura. Em termos junguianos, podemos dizer que há uma consciência que sabe, que vê, que pode estar preparada para se relacionar com o Self e que precisa de uma estrutura egóica discriminativa e flexível, que saiba “aceitar o que vier”.

As características físicas do piano também parecem contribuir para o desenvolvimento de uma auto-percepção mais aguçada. O piano tem sete oitavas, cada oitava tem sete notas diferentes (dó, ré, mi, fá, sol, lá e si) organizadas em uma harmonia sonora específica. Simbolicamente o número sete na mitologia é bastante significativo, as sete moradas da alma, os sete dias da semana, os sete planetas, e indica, segundo Chevalier e Gheerbrant (2009), o sentido de uma mudança depois de um ciclo concluído e de uma renovação concluída, a totalidade do espaço e do tempo, a totalidade do universo em movimento. Juliana parece confirmar tais hipóteses de integração e renovação: “(quando toca piano) eu me sinto mais renovada, parece que é por dentro, acho que eu renasço”. O tema do renascimento também é bastante marcante na 4ª aula, seja por meio do símbolo da borboleta, já discutido anteriormente, que remete ao sentimento da alma liberta do invólucro, ou também no texto que diz, propriamente, sobre o nascimento:

“O nascimento” Do símbolo a vida

Do som um sentido.

Da música um conjunto para Conviver OO em comunidade.

Podemos sugerir que o contato com o piano veio, ao longo do tempo, possibilitando a expressão do si mesmo, das emoções que haviam dentro dela, uma renovação, um renascimento. Juliana descreve “O nascimento”, diz sobre o símbolo que explica a vida, que, em termos junguianos, podemos definir como o nascimento da consciência e do ego. Diz ainda sobre o som, que propicia um sentido após um ciclo concluído de renovação, um canal entre a consciência (sentido/significado) e a

totalidade. Sentido esse que possibilita a ampliação da consciência, a fluidez do processo de individuação, diante da possibilidade de uma organização egóica (a música é o som organizado), quando se torna, então, possível nascer o “com-junto”, o “com-viver”, em “comum-unidade”, simbolizando aqui, as infinitas possibilidades de comunhão ego/Self.

Conforme descrito por Bennett (2007), as sete oitavas e demais especificações para a construção de um piano (como as teclas batidas, os feltros, as cordas esticadas, a madeira) garantiriam um grande poder de expressão, o pianista poderia usar o contraste forte e suave, ter controle do volume sonoro e das múltiplas nuances que permeiam os sons, ligados ou curtos e destacados, com melodia em uma mão e acompanhamento em outra. O piano, portanto, parecer ser um facilitador para a expressão do mundo interior do pianista. As peças do piano são feitas artesanalmente, de madeira. A madeira é “A Matéria”, é um símbolo da substancia universal, da prima matéria, que remete também ao materno. Na liturgia católica, a madeira é muitas vezes adotada como sinônimo da Cruz e da Árvore, símbolos estes que remetem aos sentidos dos ciclos de evolução cósmica, de vida e de morte e que já foram discutidos anteriormente, pois foram elementos marcantes nas produções gráficas de Juliana.

A qualidade sonora dos instrumentos musicais, que antes eram naturais, como cascas, coco, foi uma preocupação pós-período Renascentista (1450-1600), com a ascensão do catolicismo, que reflete na busca por uma música divina, cujos ideais eram de perfeição, seja nas artes, na ciência e na música. Foi neste contexto que surge, por volta de 1700, o piano. Hoje, a disposição das teclas horizontalmente abrange o campo de visão e pode auxiliar na execução de um som mais firme. Isso garante um espaço de expressão visual delimitado, protegido, onde o pianista pode ter domínio e também exercer a liberdade. Para tocar é preciso uma consciência corporal, uma postura correta, a fixação das plantas dos pés no chão, uma respiração controlada e ritmo. O braço faz, de fato, a conexão entre o corpo, ereto, que se une ao chão e ao ar. E as mãos parecem ligar a alma ao todo, podendo significar esta conexão como uma experiência de totalidade, como relata Juliana: “Eu acho que o som dele (do piano) é diferente, traz mais vida, você pode articular a mão e o coração. (…) Ah, você pode sentir você, pode sentir dentro de você”. Numa

compreensão analítica, pode-se pensar que a conexão ego/Self também se faz por meio da alma, do centro da personalidade, que propicia o “sentir dentro”.

Em síntese, existem diversos caminhos e possibilidades para olhar as muitas expressividades de Juliana neste trabalho. As vertentes não se esgotam. Os três aspectos aqui discutidos, a saber, a análise simbólica dos principais elementos que apareceram nas produções; o olhar para os conteúdos do inconsciente pessoal, como as vivências complexadas e desvitalizadas, que puderam ser resgatadas pelo contato com o piano e significadas em novas vivências; e, por fim, a possibilidade de entrar em contato com potencialidades inconscientes, confirma a hipótese de que o piano pode ser um canal de expressão do inconsciente. Por meio da análise das vivências simbólicas, percebemos que o piano é um símbolo de transformação que faz o papel de função transcendente, aquela que é capaz de relacionar mundo interno e externo, ou seja, é um canal de ligação entre ego e Self.

CAPÍTULO VII – CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Tudo tem um tempo você encontra um tempo seu, o tempo, cada nota tem um tempo, cada música tem seu ritmo, seu espaço, seu tempo, eles mudam de acordo com a melodia, com o ritmo, assim como o ritmo a gente também tem o nosso, assim a gente respeita, a gente também tem que respeitar também, o respeito…

respeitar a mim, como eu respeito a música”.

(Juliana, Maio de 2009)

Este estudo teve como objetivo compreender se tocar um instrumento musical, especificamente o piano e a conseqüente experiência com o som e a música, podem contribuir para promover um canal de abertura e expressão do Self.

Os diversos aspectos e simbolismos discutidos neste trabalho parecem confirmar que o contato com o piano pode ser um canal de abertura ao Self, sendo um símbolo de transformação, exercendo a função transcendente que relaciona mundo interno e externo.

Este estudo pretende abrir novas possibilidades para se pensar sobre a importância de se manter um contato consciente com as sonoridades da vida no decorrer do desenvolvimento. Especificamente, pretende-se sinalizar para a importância da atitude musical, de tocar um instrumento que, no caso, foi o piano, como um recurso de promoção da saúde psíquica. Busca-se, dessa forma, estimular novos estudos, com outros instrumentos e linguagens musicais, que permitam aprofundar o diálogo entre a música e a psicologia analítica.

O respeito ao tempo e ao espaço de cada nota, movimento, ritmo e melodia internos de Juliana foram, sem dúvida, imprescindíveis para a concretização deste opus musical. Em conjunto, pudemos construir uma nova composição. O som ganhou forma e espaço, se tornou matéria, se tornou música.

É importante lembrar que a música é feita por um conjunto de notas, de sons, e assim também se deve pensar na configuração dos espaços musicais, independentemente da situação, sejam estes de ensino nas escolas de educação infantil, de educação musical, sejam para adultos ou como uma forma de olhar para si mesmo, sejam tais espaços concebidos como um processo de cura. É estar em conjunto, internamente e externamente, com um mundo objetivo, a natureza, os arquétipos e potencialidades do inconsciente e com um mundo subjetivo, de pessoas e de sentidos. É, portanto, uma relação que acontece a partir de duas (ou mais) singularidades e que devem ter como centro o respeito ao que cada um expressa de si mesmo.

Assim se dá o processo de individuação, que não finaliza, mas se transforma, na tentativa de se desenvolver da melhor forma possível as qualidades que nos tornam humanos em uma coletividade e singularidade. Finalizamos, portanto, com as palavras de Jung:

“A individuação (…) significa precisamente a realização melhor e mais completa das qualidades coletivas do ser humano; é a consideração adequada e não o esquecimento das peculiaridades individuais, o fator determinante de um melhor rendimento social. A singularidade de um indivíduo não deve ser compreendida como uma estranheza de sua substância ou de suas componentes, mas sim como uma combinação única, ou como uma diferenciação gradual de funções e faculdades que em si mesma são universais. Cada rosto humano tem um nariz, dois olhos etc., mas tais fatores universais são variáveis e é esta variabilidade que possibilita as peculiaridades individuais. A individuação, portanto, só pode significar um processo de desenvolvimento psicológico que faculte a realização das qualidades individuais dadas; em outras palavras, é um processo mediante o qual um homem se torna o ser único que de fato é (…) na medida em que o indivíduo humano, como unidade viva, é composto de fatores puramente universais, é coletivo e de modo algum oposto à coletividade. A individuação (…) tem por meta a cooperação viva de todos os fatores” (JUNG, [1928] 2001, p. 49-50).

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